Quem já leu esse imenso livro sabe muito bem que ele é formado por três grandes partes. O velho testamento, o novo testamento e o apocalipse. O velho testamento é a parte que define a religião judaica até a chegada do Cristo. É um livro estranho e complexo, recheado de violência e fundamentalismo. O novo testamento é formado pelos evangelhos e conta da vida de Jesus, o Cristo, aquele que vem para realizar com os homens uma nova aliança. E o último é um livro místico, cheio de profecias sobre um suposto fim do mundo.
Pois logo que a Record foi comprada pela Igreja Universal, a igreja iniciou sua pregação midiática de uma forma muito esperta. Em vez de investir nos cultos - embora eles estejam ali – preferiu apostar nas novelas e séries. Afinal, como bem já definiu o sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos, nosso país é movido à telenovela. Aqui, esse gênero de dramaturgia tem um alcance inacreditável. Quase toda a usina ideológica da classe dominante se expressa nesses folhetins, de maneira subliminar e com uma eficácia impressionante.
A Globo, que ainda é líder no gênero, é perita em fazer a nação brasileira amar empresários, fazendeiros, usineiros, mineradores, enfim, todas as frações da elite dominante.
Pois a Record também apostou na novela para trabalhar a questão da religião. Começou com a História de Esther, em 2010 e foi trazendo, a partir de novas produções, várias partes do primeiro livro em forma de folhetim. Amores, intrigas, assassinatos, violência e tudo o mais que recheia o velho testamento, mas sobretudo a ideia que existe um povo eleito: o de Israel. Ou seja, tudo visceralmente ligado ao universo simbólico do líder maior da igreja, Edir Macedo, que se acha a encarnação do Rei Salomão. É perfeito.
As novelas “Os Dez Mandamentos”, em 2016, e a "A terra Prometida", em 2017, alcançaram índices incríveis de audiência e chegou a ultrapassar a Globo. E elas nada mais foram do que a narrativa do povo de Israel fugindo do Egito. Nelas se pode ficar frente a frente com esse deus vingador, capaz de trazer inúmeras pragas ao povo do Egito apenas para ferir o Faraó, ou que deixou o povo minguar no deserto porque alguns decidiram adorar outro deus. E esse é o deus que a igreja de Macedo professa. Um deus que se vinga, um deus que mata, um deus intolerante, um deus insaciável, um deus que tem filhos prediletos e que odeia quem não lhe rende homenagens.
Quem conhece as escrituras sabe que o Cristo vem justamente para quebrar a ideia de um deus assim. Jesus propõe uma nova aliança, ele não tem povo eleito, ele se senta com os gentios, ele toma água da Samaria, ele ama os fracos, os lazarentos. Não traz a ideia de um deus vingador, mas de um deus de amor. E esse não é o deus que a Record incensa. Tanto que a novela que fala sobre Jesus não teve lá muito sucesso. Jesus é fraco, ele morre no final. Os grandes sucessos são os que estão colados ao deus de poder, ao deus da morte. Por isso não é de estranhar que tantos novos-evangélicos possam defender pautas tão estranhas ao universo de Jesus como a pena de morte, o acesso às armas, a morte aos petistas, comunistas, gaysistas, umbandistas e globalistas. É porque eles estão acostumados com as histórias de um deus que não poupa ninguém além dos seus seguidores fiéis. Também não é sem razão que toda essa gente, incluindo aí os católicos fundamentalistas, considera o Papa Francisco o anticristo, a besta encarnada. Porque Francisco professa um deus de amor, que é um desconhecido para eles.
Então, eis que nesse momento tão obscuro da vida brasileira lá vem a Record com mais uma novela bíblica. O Gênesis. O começo de tudo. O criacionismo. O homem feito do barro por um deus caprichoso que vai se expressar em momentos colossais da vida humana: a queda do paraíso, a disputa entre irmãos pelo poder, a busca pelo poder real, o afogamento de toda a humanidade porque não rendia graças a ele, a destruição de Babel para impedir que a criação se aproximasse do céu, e muito mais. O deus da vingança em todo seu poder. O deus que fundamentaliza a espiritualidade.
Tudo isso é para dizer que a indústria cultural não dá ponto sem nó. Ela expressa as ideias da classe dominante. E a classe dominante quer forjar uma nação vestida de medo para poder aplicar sobre ela o seu poder. Medo do deus vingador, medo do comunista, medo da mulher emancipada, medo do negro, medo do diferente, medo de tudo. Então, contra esse medo vem a mão dura da polícia, do pastor, do padre, do patrão.
Eu tive uma criação católica. Minha mãe era devota e no seu exemplo ia nos ensinando sobre a religião. Mas ela era jesuânica, agarrava-se a nova aliança, entendia que era chegada a hora de um deus dos de baixo. Já bastava de reis, rainhas, templos suntuosos, líderes de mão de ferro. Ela cria em um Jesus amoroso, vestido em sandálias, comendo com os pecadores, as putas, os esquecidos. E é nesse deusinho que eu creio também.
Mas, infelizmente, a voz que ecoa é a do Macedo. Ele tem uma televisão. E nessa usina do ódio vai gerando um povo sem compaixão.
Enquanto isso, o Cristo, o que veio para zerar o horror do velho testamento, segue sendo chicoteado, torturado e morto. Todos os dias nas ruas das nossas cidades.