Quem acompanha a carreira do homem que hoje está na presidência do Brasil sabe: ele é isso aí. Durante toda sua medíocre vida parlamentar ele esteve ancorado na ignorância, no ódio, na intolerância, na sede de sangue. Não é sem razão que seu ídolo maior é um dos mais nefastos torturadores da ditadura militar. Falando sobre a ditadura ele afirmava: “Matou só 30 mil, tinha que ter matado mais”, ou “Não devia ter só torturado, tinha que ter matado”. Tirando isso, tema que domina com maestria, sobre o demais é sempre uma ladainha de burrice e preconceito. Seu mundo é tão pequeno que suas ideias sobre ele caberiam em algumas linhas de papel. É o receptáculo perfeito para servir de gerente sem alma do capital. Por isso, quando sua presença foi ganhando corpo em uma camada igualmente ignorante da população, ele passou a ser notado pela elite dominante no país.
Naqueles dias, os partidos políticos amargavam grande repúdio por parte dos brasileiros. A direita tradicional havia perdido força e o Partido dos Trabalhadores fraudava as esperanças dos que acreditavam ser possível um passo mais à esquerda. Cenário perfeito para o azarão. E foi assim que a criatura saiu da marca dos 3% para ganhar as eleições em 2018. Não foi um raio no céu azul. Foi a consequência dos equívocos políticos de quem deveria ter formado as gentes e mantido a população organizada para alavancar mudanças estruturais.
Correndo por fora da mídia comercial, aproveitando-se das novas redes comunicacionais, a criatura foi crescendo. Expressava o sentimento de muita gente que havia se mantido no silêncio, mas que alimentava dentro de si horrores semelhantes. Assim, bastou criar um inimigo plausível: os comunistas (já bem conhecidos por serem comedores de criancinhas) e pronto. Fervia o caldo da desgraça. A lógica empregada pela campanha bolsonarista não era novidade. Já tinha sido empregada na chamada “Primavera Árabe” que destruiu parte do Oriente. Mentiras, simulações, ampliação do medo, reforço dos ódios raciais e preconceitos de todo o tipo, aliado ao fundamentalismo religioso construído durante décadas pelas chamadas igrejas neopentecostais.
Assim, enquanto a criatura bradava contra a mídia, o sistema e “tudo isso que está aí”, a esquerda brasileira, já sem dentes para morder, trabalhava com propostas palatáveis para a classe média que havia crescido no país, mas que se faziam incompreensíveis para uma camada gigante da população. Acabou perdendo a classe média, que se aliou ao discurso ultraconservador com o intuito de manter privilégios e perdeu a massa de trabalhadores que queria mudanças, qualquer mudança. O crescimento de Bolsonaro nas pesquisas levou a mídia comercial a olhar com cuidado para ele, e os discursos televisivos foram mudando. Era uma boa oportunidade de se livrarem do PT que, apesar de ser muito mais liberal do que esquerda, trazia em si a simbologia da esquerda. Assim, o mesmo Bonner que hoje faz discursinho contra Bolsonaro é o mesmo que massacrou os candidatos da esquerda liberal, e pisou miudinho com Bolsonaro nas famosas entrevistas do Jornal Nacional.
E assim, chegamos ao horror dos nossos dias. Eleito para ser o coveiro das aspirações mais à esquerda, Bolsonaro foi apoiado pela direita brasileira esfacelada, pela mídia comercial, pelas igrejas sedentas de grana, e pela camada da população que mantinha viva em si toda série de ilusões acerca da ordem, progresso e crescimento econômico do tempo dos militares. Ele seria o condutor da destruição da “bagunça” petista.
Por isso não há surpresas na política implementada pelo grupo bolsonarista. Tudo que prometeu, está cumprindo. Militares no governo (mais de oito mil em cargos), mão dura contra a dita esquerda, destruição dos serviços públicos que, segundo eles, só servem para cabide empregos dos esquerdistas, mais poder para as forças de segurança (para garantir a ordem), entrega das riquezas nacionais aos estrangeiros (que são mais competentes e trarão o progresso) e muito circo, para manter a massa animada. Vejam que não passa um dia sem que esse governo faça alguma aglomeração. A mobilização do grupo de apoio é constante, tanto física quanto virtualmente. Os grupos de uatizapi são eficazes e velozes. Qualquer declaração contra o presidente é imediatamente solapada com centenas de postagens de contrainformação.
Colar a figura do presidente à rede de “heróis mundiais” enviados por Deus é a estratégia perfeita. Junto com Donald Trump ele comanda um aguerrido grupo de lutadores que se uniu para enfrentar e destruir os pedófilos, abortistas, gayzistas e comunistas que querem destruir o mundo. Essas informações são repassadas nas igrejas aliadas, nas famílias, nas redes. É um universo paralelo que se multiplica dia a dia sem que se dê a devida atenção.
A chegada da pandemia é vista como um “castigo divino” aplicado por conta de o país ter permitido um governo de comunistas (no caso, o PT, embora o partido não seja comunista). Agora, há que limpar esse mundo que foi violado pela mancha vermelha. Então, daí a necessidade dos cordeiros imolados. Os escolhidos, que tomarem ivermectina e cloroquina, serão salvos. Não importa que a vida real esteja mostrando que aqueles que fizeram o tal tratamento precoce estão morrendo também. Eles deviam ter algum pecado. Os justos não, esses serão salvos. A prova viva é o próprio presidente que pegou o vírus e está vivinho. Isso basta.
E enquanto os “pecadores” caem como moscas nos hospitais públicos sem pessoal, sem equipamentos, sem insumos e até sem salários, os justos avançam. Hoje, quando a cidade de Manaus vive o horror de presenciar a morte por asfixia de pacientes por conta da falta de oxigênio, os grupos bolsonarista espalham a boa nova da vitória final que virá com os exércitos de Donald Trump no dia 20 próximo. A “Operação Tormenta” varrerá do mundo os comunistas e impedirá, inclusive, que sejam produzidas as vacinas feitas com fetos humanos, que eles tentam obrigar o mundo a tomar. Uma vacina que inoculará um chip capaz de tornar a pessoa comunista ou quem sabe, um jacaré.
A batalha comunicacional neste momento dá vitória folgada aos bolsonaristas. Ela tem uma eficácia extraordinária a tal ponto de as pessoas não se emocionarem para nada com as mais de mil mortes por dia no país, e mesmo o caos em Manaus, quando as vidas se extinguem, sufocadas, sem ar, não provoca maiores emoções. Pelo contrário. A corrente informativa nos grupos espalha a seguinte informação: o governo federal mandou muito dinheiro para o Amazonas, mas os governantes de lá desviaram para tentar destruir o presidente. A culpa sempre é de outro.
A contraofensiva deste tipo de informação parece não encontrar espaço. As palavras emocionadas de William Bonner no Jornal Nacional só provocam risos de mofa. O presidente disse que não é para acreditar na Globo. E ninguém acredita. Ponto final. E a esquerda tirou como estratégia bradar o “Fora Bolsonaro” como se a vontade expressa nas redes pudesse se tornar potência sem uma ação organizativa real. Não pode.
No meio do caos, com as mortes se multiplicando e o país sendo assaltado à luz do dia, entidades gigantes como as Centrais Sindicais, os Partidos Políticos, que congregam milhares de pessoas, estão completamente paralisados. Nada além de “lives” na plataforma do grande irmão facebook.
Hoje é Manaus, amanhã pode ser qualquer outra cidade, mas a responsabilidade parece não colar nas figuras do poder. O que voga é a máxima religiosa: “milhões cairão a tua esquerda, milhões à direita, mas tu, que crês, não será atingido”. O que fica vivo acredita que deu certo e o que morre não tem mais o que pensar. Então tá tudo certo.
O fato é que a pandemia só potencializou o desmonte, o crime. E cada um que ajudou a colocar no poder os que hoje nadam no sangue é responsável. Nenhum esquecimento e nenhum perdão. Não é só o presidente – esse é só o gerente do processo. É a mídia, são as igrejas da prosperidade, são os deputados federais, os senadores, os juízes da Suprema Corte, os empresários, as gentes “de bem”. Todos os que sustentam essa lógica de destruição sem garantir parada são responsáveis e haverão de responder por isso. Se não hoje, algum dia, porque como diz a música do Geraldo Vandré, “deus que se descuide deles, um jeito a gente ajeita dele se acabar. Fica mal com deus, quem não sabe dar, fica mal comigo quem não sabe amar”.
Mas, para isso, há que organizar.