Alzheimer/Velhice

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Era uma vez o Brasil

 


Na foto, Matheus Nachtergaele encarnando Zé do Caixão. Extraordinário.

Assisti há pouco tempo a primeira temporada de uma série chamada “Hollywood”. É incrível ver como a indústria do cinema tem essa capacidade de se alimentar de si mesma, gerando produtos sem fim. A série é uma ode à arte do cinema, sob o ponto de vista estadunidense, é claro, uma vez que ali só aparecem referências ligadas àquele país. Artistas, diretores, produtores. É um passeio sobre o nascimento da indústria cinematográfica e toda a sorte de dramas que ensejou, desde as buscas pessoais dos aspirantes a astros e estrelas até os dramas coletivos como a questão da homossexualidade, o racismo, a libertação da mulher etc... A singularidade da série é que ela reescreve a história introduzindo momentos que poderiam ter mudado o curso das coisas. Nela, por exemplo, o jovem astro Rock Hudson, que era homossexual e sempre fez papel de galã escondendo sua opção, se revela publicamente. Uma atriz negra ganha sua chance de interpretar uma personagem entregue só as brancas e é premiada por isso. E uma mulher assume, com brilho, a condução de um estúdio cinematográfico. Coisas inimagináveis nos Estados Unidos dos a nos 30, 40 e 50.  Enfim, é interessante, mas é Hollywood, ou seja, mais do mesmo.  

Digo isso pensando numa fala do professor Nildo Ouriques, num dos programas Pensamento Crítico, quando ele diz que no Brasil sabemos mais do cinema estadunidense do que do nosso. E é verdade. Imaginei então algum cineasta fazendo um apanhado da vida cinematográfica do Brasil numa série assim, tipo essa de Hollywood, trazendo para as novas gerações todos os dramas que fizeram a beleza do nosso cinema, desde as famosas chanchadas, Mazzaropi, as pornochanchadas, o cinema de arte, Zé do Caixão, Glauber, Barreto, e até as bobajadas comerciais da Globo, mostrando os nossos artistas e os bastidores das produções. Seria um trabalho e tanto e nos daria um panorama singular do cinema nacional.  

Lembro do magnífico trabalho feito pelo ator Matheus Nachtergaele na série que contou a vida de Zé do Caixão, um dos nossos grandes. O trabalho foi realizado inspirado na biografia “Maldito – A Vida e o Cinema de José Mojica Marins”, escrita pelos jornalistas Ivan Finotti e André Barcinski. A direção foi de Vitor Mafra e o roteiro produzido por Barcinski, Mafra e pelo professor da Academia Internacional de Cinema (AIC), Ricardo Grynszpan. É uma lindeza de série e deveria ser vista por todo o país em canais abertos. Mas até agora só passou no cabo. É uma belezura de trabalho, com a atuação extraordinária de Matheus. 

Enfim, temos cinema, temos história, temos atores e atrizes geniais e temos roteiristas incríveis. É tempo de contarmos essa história e eternizar os grandes e os pequenos realizadores. Só o sistemático revolver da memória garante que a vida vivida não se perca. Viva o cinema nacional.  


terça-feira, 5 de janeiro de 2021

As aventuras do pai


 Depois de umas três noites bem mal dormidas hoje decidi dar uma cochilada depois do meio dia, quando o pai fica sentado ouvindo música e cochila também.  Mas, acabou que eu apaguei e dormi pesado. Quando despertei já agucei o ouvido, pois havia muito silêncio. E silêncio é confusão. Saltei da cama e já vi que não estava na sala. Hum... Corri para o quarto dele, entrei devagarinho e lá estava ele no banheiro, tomando um banho com a água do vaso sanitário. A maior lameira no chão, sabonete por tudo e ele sem chinelo. Um perigo absurdo. 

Nessas horas a gente não pode fazer alarde, nem movimentos bruscos pois se ele se assusta o trem fica feio. Fui chegando de mansinho, falando baixo, segurando-o pelo braço. Estava ali muito à vontade, com a toalha enfiada no vaso, a qual ele tirava e passava pelo corpo. Delicadamente fui puxando para o box e abrindo o chuveiro.  

- Bora lavar essa cabeça, querido? Olha o chuveirinho aqui, ó... 

E ele meio desconcertado, mas já aceitando o chuveiro, foi seguindo com o banho. Agora já com a água limpinha e a bucha de banho.  

A parada é assim. Nunca quer tomar banho e é só deixar sozinho que apronta. Uma piscada de olho e eles nos escapam. 

Depois, já banhado foi se refestelar no alpendre.  


 

O tempo da confusão



 Li há pouco tempo o longo artigo de Jimmie Moglia sobre a política estadunidense interna e externa. A que está em curso com Trump e a que vem com Biden. Segundo ele, tanto um quanto o outro trabalham firmemente com a nova modalidade de poder que veio montada na emergência das atuais plataformas de comunicação: a da confusão.   Mogli diz que o país caminha em meio a bombardeios éticos, mísseis terapêuticos, assassinatos democráticos e uma espécie de imperialismo humanitário. “Mesmo o raciocínio mais perspicaz pode ser facilmente confundido com tudo isso, enquanto o mítico cidadão comum, perdido no labirinto mental das notícias, sente como se tivesse tropeçado na escuridão absoluta de um universo sem estrelas. Não se pode negar que a confusão é a matéria-prima do poder”. 

Sobre algumas confusões bem visíveis ele aponta: como é possível demonizar a China se os EUA compram tudo o que ela produz? Como pode a Suprema Corte dos EUA se recusar a investigar a acusação de fraude nas eleições se é a Suprema Corte que tem de fazer isso? Isso gera uma confusão tremenda na cabeça do sujeito comum, que fica perdido em meio a tanta contradição. O absurdo desaloja e é muito mais sedutor que o medo. 

A partir dessas reflexões do escritor estadunidense pode-se pensar o Brasil e a política atual. A lógica parece ser a mesma. Basta acompanhar o cotidiano das declarações presidenciais. Ora está com Covid, ora não está. Ora fala dos planos para vacina, ora fala que quem vacinar vai virar jacaré. Num momento diz que vai mudar tudo o que está aí, e no outro investe na mesma política de sempre do toma lá, dá cá. Tal e qual os EUA fala mal da China, mas compra tudo o que há.

Da mesma forma age a chamada esquerda liberal. Fala mal do Bolsonaro e se alia com o que há de mais podre no Congresso. Critica as ações governamentais, mas não convoca o povo para protestos. Na mídia, igual. A Globo critica Bolsonaro, mas apoia Guedes. Faz discurso antirracista, enche a tela de negros, mas não discute o processo que leva ao racismo. Na verdade, o que está em jogo é a potencialidade de consumo. Se negro consome põe o negro na tela e finge ser pró-diversidade. Tudo aparece muito confuso, em todos os campos.  

Essa política da confusão não é coisa de agora e nem tem a ver com as novas tecnologias. Como bem já escreveu nosso filosofo maior, Álvaro Vieira Pinto, as tecnologias não têm vida própria. Elas são criadas e comandadas pela mão humana, pela dinâmica social. E a mão humana que conduz a confusão é a que quer manter-se firme no poder. Essa lição já foi ditada pelo presidente estadunidense Harry Truman logo depois da segunda grande guerra quando os EUA consolidaram sua postura imperial: “se não podes convencer, confunda”. Hoje, com o advento das redes sociais essa confusão ficou ainda mais disseminada. Qual criatura comum pode discernir o que é mentira e o que é verdade nas redes? Os programas de alteração de voz e de rosto já são de domínio público e enquanto alguns brincam colocando seu rosto no Capitão América ou na Mulher Maravilha, a política do poder vai manipulando outras faces. A linha entre a realidade e a invenção não está tênue, ela sumiu. E enquanto as pessoas se debatem na confusão, a mão dura reina. 

A pandemia e a Covid-19 também têm se prestado às mais estapafúrdias confusões. Um médico na TV diz que a Ivermectina previne. Outro médico diz que isso é bobagem. Um especialista diz que a máscara previne, outro diz que é bobagem. Um jornalista famoso diz que os hospitais estão lotados, outro diz que não. Tudo está sob suspeita. E afinal, quem diz a verdade? Ninguém sabe, não importa. O que importa é manter todo mundo nesse estado catatônico de confusão. 

É assim, nesse universo de confusão, que vão se desenvolvendo as teorias mais alucinantes como a da grande transformação mundial na nova era de Aquário, quando virá um enviado de deus (Trump) para, com seu exército (o dos EUA), comandar os exércitos amigos de todo o mundo, instaurando um planeta sem comunismo, essa doença gayzista, cujo grande líder é o filho de Satã, o Papa Francisco. Quem pode com um enredo destes?  

Cada leitor poderia aportar algum exemplo dessa política da confusão que se dissemina pelo mundo. Tudo com um único objetivo. Manter o rebanho quieto e seguir abocanhando os lucros. Logo, por baixo da aparente balbúrdia babélica, há uma verdade pétrea: no capital não se mexe. Tudo para os capitalistas que comandam o mundo, e a confusão + dominação para o restante. Ou seja, segue como dantes no quartel de Abrantes. A dominação pela força, pelo medo, pela sedução ou pela confusão, tudo conforme o freguês.  

Então, a dica é: mantenha-se calmo e siga o dinheiro. É lá que mora a razão de todas as coisas no capital. Veja que não é sem motivo que as grandes fortunas aumentaram mais de 30% durante a pandemia. O capital, voraz, não perde. Ele vai se adequando, se adaptando, cooptando nossas bandeiras. Olho vivo! Não se confunda. O inimigo é o capital e contra ele temos de travar nossa mais longa e feroz batalha.

São Borja, o engenho de arroz e a propriedade coletiva



Quando éramos pequenos, vivendo em São Borja, nossa maior alegria era brincar na montanha de cascas de arroz. Do lado da nossa casa, na propriedade do seu Artur Savian, havia um engenho. Lá dentro eles beneficiavam o arroz. O esquema era muito legal e entrar naquele engenho era adentrar em um mundo mágico. Enorme, cheio de tubos gigantes, a nossa Nárnia. O arroz entrava com a casca e no processo ela era descartada através de um enorme cano bem no alto do engenho, se armazenando na parte de fora. Isso fazia com que se formasse uma espécie de montanha de cascas.

Brincar ali era divino, apesar da coceira que dava depois. Mas, quando a gente é criança essas coisas não têm qualquer importância. Era bastante comum a gente fazer túneis nas cascas, nos quais entrávamos para nos esconder. Hoje eu vejo o perigo que era. Tudo era muito frágil e se aqueles túneis desabassem sobre nós, provavelmente morreríamos sufocados. Bueno, nunca aconteceu.

A melhor brincadeira era a de mocinho e bandido. E aí não importava muito se a gente era o mocinho ou o bandido porque o bom mesmo era ser atingido e rolar pela montanha de cascas. Era uma queda homérica, épica mesmo, com direito a várias cambalhotas. Descer rolando aquela montanha de cascas nos fazia todos excepcionais candidatos a dublês em filmes de ação. A nossa melhor aventura.

Não bastasse isso, naqueles dias não havia de maneira alguma o conceito de propriedade privada. Como a gurizada era muita, nas brincadeiras de esconde-esconde era comum a gente entrar na casa uns dos outros e nos esconder nos quartos, embaixo das mesas, nos armários. Se havia muros, os portões estavam sempre escancarados e nas demais casas só o que tinha era um cerca de arame, as quais ultrapassávamos sem problema. 

Lembro até hoje da querida Dona Mira, esposa do seu Artur, que vez ou outra se surpreendia com um de nós nos quartinhos que ficavam ao longo do enorme alpendre. Mas, não dava nada. Ela fazia cara de paisagem para não entregar ninguém e a turma seguia a brincadeira. Assim era também na casa da Nelci, onde buscávamos os cinamomos para brincar de Tarzan, pulando de galho em galho enquanto ela lavava a roupa sem se ocupar de nós.

Que tempos aqueles na rua dos Andradas, quando a rua e as casas eram de todos.