Alzheimer/Velhice

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

No Brasil, segue a procissão dos mortos

No quinto mês do ano da peste chegamos aos 100 mil mortos no Brasil, enquanto nos EUA são 155 mil. Pelo visto, já, já, o nosso paisinho ultrapassa a matriz, para alegria dos que governam. Enfim, poderemos estar na frente do “tio” Sam. Seguindo a risca a lógica do sistema capitalista, os mortos que se mantenham em silêncio, pois “há que tocar a vida”. Não há novidade ou assombro diante da declaração presidencial, afinal, assim tem sido desde sempre. Os empobrecidos, os trabalhadores, aqueles que têm de seu apenas o corpo nu, esses não têm a menor importância. Não há sequer que pranteá-los. Desde que a máquina de tear foi inventada e os camponeses ingleses foram expulsos do campo para se venderem na cidade industrial que tem sido assim. Sem qualquer meio para prover a vida, sem nem uma nesguinha de terra, os trabalhadores foram morrer nas fábricas. Ali trabalhavam 20 horas ou mais e acabavam morrendo moços, de tanta miséria. Não passava nada. Os ricos tocavam a vida. 

Para quem quiser saber em detalhes sobre como era a vida no início do capitalismo, basta ler o luminoso livro de Frederich Engels “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, ou para os mais renitentes com a leitura, ver o filme “Germinal”. Os trabalhadores sempre morreram como moscas. E passados séculos, nada mudou. Talvez o cenário, apenas. Se não há pandemia, há exploração, miséria, assassinatos. Basta uma olhada nesses programas imundos do tipo Datena. Os corpos caem sem parar. Isso se naturaliza porque as mortes parecem acontecer devagar e espalhadas, então, aparentemente não guardam relação. E mesmo quando as mães pretas, de crianças pretas, saem em passeata pelas ruas do Rio de Janeiro, ou de São Paulo ou de Florianópolis, pedindo justiça pelo assassinato de seus filhos, a maioria olha insensível: “não é comigo”, ou então, pior: “Alguma coisa deve ter feito pra morrer assim”. 

Agora, quando o novo coronavírus surgiu, já se sabia: os que iam morrer seriam os empobrecidos, os trabalhadores. Sem cuidado com eles, pereceriam. E não deu outra. Para o sistema, a morte de 1% da população significa coisa alguma, nada, logo, não há o que prantear. Toquem a vida, dizem para os que sobrevivem, sigam trabalhando e nos enriquecendo. E os que ficam tocam a vida, de novo, sem guardar relação com a lógica que os domina. É um massacre, não apenas de vidas, mas de consciências, porque os que não são tocados pela ceifadora seguem caminhando sem compreender porque tantos morreram. “Foi o destino”, “deus no comando” ou pior: “malditos comunistas”. 

A verdade é que não foi o destino. Foi o descaso. O governo federal minimizou a doença, sugeriu que ninguém ficasse em casa, tripudiou do uso da máscara, incentivou a aglomeração. Não fosse isso, muito menos gente teria morrido. Cuba, a pequena ilha caribenha, socialista, é um exemplo disso. Com 11 milhões de habitantes teve 88 mortes. O governo cuidou de seu povo. A Bélgica, capitalista, com o mesmo número de habitantes (11 milhões), teve 9.800 mortes. Uma diferença abissal, sendo que a Bélgica é rica e Cuba é um país bloqueado. 

No Brasil, alegando que não era coveiro, o presidente da nação se recusou a dar um trato unificado à doença. Jogou a responsabilidade para cada governador, cada prefeito. E todos eles, pressionados pelos empresários, foram entregando, de bandeja, as cabeças e os corpos dos trabalhadores brasileiros. Que se salve a economia. Danem-se as pessoas. Outras sobrarão para substituir. Vamos tocar a vida. 

Há projeções de que até outubro o país chegue aos 200 mil mortos. Para o sistema, nada. 1%. E para os que sobrarem também parecerá que foi muita gritaria por tão pouco. Afinal, as novelas serão retomadas, as aulas voltarão, o comércio reabrirá todinho, será lançado um novo Ifone, as academias de ginástica voltarão a ser o templo do corpo, a Amazon divulgará seus lucros estratosféricos, os bancos abrirão linhas de empréstimos e tudo ficará no passado. O sistema capitalista segue vigoroso, até fortalecido, afinal, morreram tantos velhos, quantas aposentadorias que já não serão mais necessárias. Será então a hora de criar um novo imposto, aumentar o preço dos produtos, alguma coisa assim que leve as pessoas a trabalharem mais para poderem manter a existência. Marx já dizia isso lá no século XIX: “para o capital, os trabalhadores devem ganhar não tão pouco, para evitar que morram, nem tão muito que os leve a preguiça”. Manter o trabalhador no limite. É e será perfeito. 

Os mortos? Ah, os mortos. Esses estarão bem, na glória de deus, que foi quem quis assim. 


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Lino


Conheço o Lino faz tempo, desde que entrei na UFSC como trabalhadora em 1994. Desde sempre um professor pé-no-chão. Um homem que ensinava – e ensina – a arquitetura a partir da cidade real. Andando pelos caminhos, conhecendo cada cantinho, observando cada transformação, amando a cidade. Esse é Lino. Um cara cheio de amor pelo espaço urbano, espaço da vida das gentes. Um cara que vê a periferia não como lugar para ser melhorado, mas lugar para ser transformado porque todos têm direito a viver uma vida boa e bonita. 

O Lino é a reminiscência do antigo PT, aquele dos primórdios, da práxis, que juntava a teoria com a prática. O Lino é um homem extraordinário, ainda cheio de pureza. Muitas vezes, seus adversários dizem que ele é só um tarefeiro, e que isso é alienante, porque a luta política não é só estar fazendo coisas pelos empobrecidos. Mas, o Lino não é um bocó. Ele é professor universitário, bastante afeito à teoria. Só que ele sabe que existem coisas que precisam ser feitas e ele faz. Isso é o que me encanta e emociona. 

Agora, quando essa loucura da pandemia começou, lá estava ele no apoio concreto às ações de solidariedade, de manhã, tarde, noite e fim de semana. Carregando cestas básicas, produtos de limpeza, agindo. Ah, mas isso não muda nada. Muda sim. Muda a vida de algumas famílias. Isso significa que ampara dezenas de universos, porque cada ser é um. O Betinho dizia que a fome não podia esperar, e que pessoas mortas não fariam a revolução. Por isso criou a campanha contra a fome, e também foi criticado. Cristão, lhe xingavam. Pois é. O Lino é assim. 

Ele reúne os indígenas, os sem-teto, os moradores de rua, o povo de terreiro, o pessoal de ocupação. Ele caminha na cidade empobrecida, ele faz o que tem de fazer. E não é pra buscar voto, não. Porque ele sabe que nesse Brasil patriarcal, ainda uma fazenda, os empobrecidos acabam votando nos políticos que dão coisas urgentes como uma carrada de barro, ou telhas, ou alguns trocados. Ele não dá isso. Ele dá atenção, ajuda a organizar, discute em profundidade os problemas. Ele luta pelo dia em que as pessoas votarão num cara porque tem com ele um projeto. Mas, não é assim. Ainda não. Por isso ele trabalha com formação e seu gabinete de vereador tem sido esse espaço de estudo, de encontro, de construção de novo tempo. 

O Lino constrói com a gente um projeto de cidade, ele escuta, ele repensa, ele aprende. Eu, quem nem sou mais do PT voto nele e tenho vontade de vê-lo prefeito dessa cidade. Porque a cidade do Lino é a minha cidade. Essa que se vê desde o chão vivido e pisado. Sei que é difícil. São tantas as traições, as punhaladas nas costas, o abandono, o desdém. Mas, sigo crendo. Dia virá que os puros de coração comandarão a terra, dia virá a revolução.  Tô contigo, Lino. Sempre...


Inverno


É agosto. Os cachorros se movimentam mais, latem mais, perseguem espíritos. A lua cheia aparece na borda do meu muro lá pelas sete horas, imensa. Gosto de ficar parada, vendo-a subir, ficando cada vez maior e mais brilhante. Jacy. Repleta de bênçãos, movimentando nossas marés interiores.  Que espetáculo. Não canso de apreciar. 

E, nessas noites de inverno o céu parece que se mostra com mais esplendor. Tudo tão limpo. As estrelas bem próximas. Gosto de apagar as luzes da casa e sentar no jardim, em silêncio, só sentindo o roçar dos gatos nas pernas. É quando os cachorros se aquietam e ficam ao meu lado, reverentes. Então, fico buscando as constelações. O cruzeiro do sul assoma, Orion aparece com as três Marias em destaque, Antares, a vermelha, pisca, indicando o caminho de Escorpião.  Ah, o céu.  Logo me vem à mente o Sr Spock, capitão Kirk, capitão Picard, meus parceiros cotidianos de aventuras pelo espaço. Mando um beijo para Carl Sagan, esse homem incrível que tanto me ensinou. Chego a vê-lo galopado pelo céu estrelado, atado a cola de algum cometa. 

Busco os discos voadores, como desde menina. Um dia virão. Sejam de outro mundo ou de outros universos temporais. Caço buracos de minhoca para poder fugir. Aqui tá estranho. Mas, enfim, esse é o tempo que me tocou viver. O vento frio vai gelando o pé, mas não arredo. A noite do inverno é bonita demais. Só faltam as fogueiras para que a comunhão se faça, mas as árvores estão podadas, e os vizinhos espiam. Se pá, eu viro bruxa. Já sou “petista”, “comunista”, e se me veem dando pago à terra ou dançando para os deuses aí a parada fica sinistra. Melhor seguir no silêncio, dançando na mente, como se estivesse no meio da pampa infinita, de cara para o minuano. 

Fecho os olhos e deixo que passe a procissão dos mortos, os que eu amo e amarei, os que me ensinaram, os que me guiaram. Acaricio as cabeças dos bichos e espero, pela bênção, pela força atávica. Tudo me inunda. Estou pronta para dormir. Assim são os invernos aqui nesse sul de mundo, nessa vereda perdida do Campeche.


Dos que nos fazem ser o que somos


Hoje encantou minha tia Tereza, deixando uma profunda tristeza no meu coração. Partiu na cauda dessa dolorosa doença que assola nossos tempos. Velhinha já, ela morava numa casa de repouso junto com a irmã, que está com Alzheimer. Foi pra lá porque, sozinha, e com dificuldades para andar, já não tinha mais como viver autonomamente no seu pequeno apartamento no Bom Fim, em Porto Alegre.  Preferiu estar com a irmã. Agora se foi, sem abraço e sem despedida. 

Minha tia Tereza sempre foi muito importante pra mim. Na casa do meu avô era na estante de livros dela que eu me fartava. Quando viajava para Uruguaiana já ia animada para enveredar por aquelas portas de madeira e mergulhar na sua coleção de livros da espiã Brigite Montfort. Ela tinha às centenas. E foi com Brigite que aprendi a conhecer o serviço secreto estadunidense. Pois, apesar de ela aparecer como uma espiã “boazinha”, ali estava também narrada toda a trama da CIA contra os países do terceiro mundo. Aquilo me formou e eu sempre agradeci à tia Tereza por isso.

A tia Tereza também foi a principal responsável por eu ter lutado pela minha profissão de jornalista. Quando vim de Minas, com 20 anos, de volta para o sul, foi ela quem deu o suporte inicial para eu seguir a minha vida e buscar o meu sonho. Lembro como se fosse hoje: cheguei à Secretaria de Educação, onde ela trabalhava, em Porto Alegre e disse: “tia, preciso de 20 mil – acho que era cruzeiros – não pergunte pra quê. Eu preciso muito”. Aquilo era muito dinheiro na época. E ela, sem perguntar, me deu. Aquele dinheiro foi fundamental para o rumo que tomou a minha vida. Assim, por causa dela e da confiança que depositou em mim, eu segui em frente. Naqueles dias, amparada também pela minha prima Circe Maria e meu primo Paulo Roberto. Esse núcleo familiar amoroso me apoiou e eu superei um tremendo desafio. Também nunca esqueci esse gesto, porque ele definiu a minha existência. 

Poderia elencar tantas outras historias com a tia Tereza. Histórias de confiança, quando ela me contava seus mais íntimos segredos. Histórias de amor, confidenciadas entre goles de Martini com azeitona, seu drinque preferido. Histórias dos avós dos avós. Tia Tereza sempre serena, apesar de toda a triste batalha que deu a vida toda para viver em paz com seu amor. Tia Tereza sempre aberta para a acolhida.

Agora, nessa hora noa, em que eu faço minha despedida, sinto que todos os momentos que vivemos foram cheios dessa intensidade amorosa que me é comum. Eu disse milhões de vezes obrigada, eu lhe dei milhões de beijos e agradecia sempre que a encontrava pela alavanca que ela me proporcionou e que me fez seguir meu caminho original. Ela sempre soube o que significava pra mim e sempre soube o quanto eu lhe era grata.  Que bom que nunca faltaram as palavras. Digo adeus com tristeza, mas sei que ela viveu à plena. Fez suas escolhas, foi corajosa, se permitiu viver o que ninguém queria que ela vivesse, foi feliz. Foi absurdamente feliz. 

Hoje seu corpo virou pó, mas ela segue, imortal, na lembrança de todos os que a amamos. Obrigada, tia.