Se existe algo que o processo de demência nos ensina é que não há caminho seguro, tampouco estabilidade. Quando a gente pensa que conseguiu encontrar uma forma de lidar com algum aspecto da doença, lá vem outra novidade a nos interpelar, exigindo novas técnicas, novos modos de lidar, tudo outra vez. Com o pai tem sido assim, praticamente a cada dois, três dias um novo problema se apresenta e há que encontrar novas soluções. A novidade agora é com relação ao remédio. Não há como fazê-lo engolir os comprimidos. Simplesmente ele não consegue. Põe na boca, dá o gole de água, mas trava. Não consegue engolir. Imediatamente cospe fora. Alguns, como a Vitamina B, consegui encontrar em gotas, mas o da pressão não tem jeito. Então, a saída é amassar e colocar na comida. Mas, o gosto é ruim e ele logo percebe, então muitas vezes cospe fora também. É uma novela mexicana. Por vezes, para garantir que tome um comprimido eu gasto dois ou três deles. Mesmo as gotas, se ele percebe que eu boto algo no suco, já não toma. Então, é todo um processo de esconde-esconde na cozinha. Na mesma linha do remédio, tem vezes que parece que ele esquece como é que se engole. Põe o café na boca, por exemplo, e fica com as bochechas cheias, olhando para mim, como em desespero para jogar fora. Tenho que correr com o baldinho para ele cuspir tudo. Não há jeito de comer. Não consegui descobrir uma saída para isso. Não sei se é uma evolução da doença ou se é passageiro. Porque passado algum tempo, eu ofereço para ele outra vez o café, o pão ou a comida e ele come. Mas, volta e meia isso acontece. Fico um pouco em pânico, porque não sei o que fazer. Tenho respeitado a vontade dele por enquanto, visto que não é o tempo todo que acontece, mas assusta-me pensar que pode chegar a hora em que ele não vai mais conseguir comer mesmo. À noite, o problema é com o xixi. Acorda várias vezes para ir ao banheiro, mas por vezes não consegue chegar. Então, faz nas calças e nem com reza braba deixa eu trocar o calção. Xinga, fica brabo, dá soco, o diabo. Não há santo que faça ele tirar a roupa molhada. Tento secar como posso, mas tem vez que ele segue dormindo molhado. E se tento trocar enquanto dorme, valamideuzi, ele desperta virado no Jiraia. Ainda são poucas vezes que isso acontece, mas e se piorar? Não aceita fraldas nem que vaca tussa. E enquanto tiver sanidade para isso tenho de inventar formas de mantê-lo seco, afinal, aí já vem o inverno. É uma luta. De manhã, quando o dia sobe, afastando toda a tensão que a noite traz, ele senta no alpendre, tranquilo como um monge. Eu o observo, silente, porque não sei o que vai acontecer na próxima hora. A vida segue, como uma montanha russa louca. E eu, tentando ser aquela que precisa dar um jeito do passeio ser bom e parar em segurança. Não é fácil!
Os Estados Unidos é tido como um dos países mais ricos do mundo, e provavelmente é. E, agora, com a explosão do coronavírus, fica bem fácil ver o porquê. No mundo capitalista a riqueza é produzida pelos trabalhadores e se concentra na mão de um número pequeno de pessoas, que são as que detêm os meios da produção. Justamente por ser assim, aqueles que são os responsáveis pela produção da riqueza, dela não podem usufruir. A eles falta educação, saúde, moradia, segurança, lazer, arte, tudo. Sua função é unicamente rodar o moinho do capital. Com a chegada do novo vírus mortal, a realidade aparece na sua expressão mais crua. Esses trabalhadores não têm a menor importância para o capital. Eles não têm nome, não têm sonhos, não tem sentimentos, não têm família, não têm existência real. São números. E, como tal, facilmente trocados sem que haja qualquer turbulência no andar da carruagem. Os Estados Unidos, sendo o país mais rico do mundo, tem a maior taxa de pessoas infectadas – mais de 500 mil - e o maior número de mortes, chegando hoje (dia 14 de abril) a 23 mil pessoas. Números que não são os números reais pois pode haver muito mais, uma vez que não há testagem em massa. Portanto, provavelmente há muita gente circulando pelas ruas com o vírus e transmitindo. O presidente Donal Trump, no começo da pandemia havia tripudiado da letalidade do vírus, dizendo que era apenas uma gripe, mas com a explosão dos casos foi obrigado a tomar algumas atitudes, afinal, é candidato à reeleição. Ainda assim, as medidas tomadas continuam não sendo as ideais e é por isso que as mortes se aceleram. Pela primeira vez na história do país o presidente foi obrigado a declarar desastre em todos os 50 estados. Não obstante, tal como o presidente brasileiro – que lhe segue os passos – Trump confunde os estadunidenses, hora falando bobagens, ora dizendo que agora, com essa declaração de desastre os EUA vencerão o vírus. Ele também trabalha contra os cientistas ligados à própria Casa Branca, que continuam afirmando: se as medidas de isolamento tivessem sido tomadas, a crise não seria tão violenta. Trump brinca no seu twitter, republicando opiniões de pessoas que pedem a demissão desses profissionais. As semelhanças com o Brasil não são coincidências. É o mesmo descaso com a maioria das pessoas. Trump, ignorando o avanço da doença, insiste que o país deve retomar a “normalidade” no primeiro de maio. Enquanto isso, a cidade de Nova Iorque, o coração pulsante da nação, é a que está mais fortemente impactada com a letalidade do vírus, com 10 mil mortos nessa terça-feira, sendo que representa a metade dos mortos no país. A comunidade médica e os trabalhadores da saúde são os que estão dando batalha, como em todo o mundo, contra todas as dificuldades. No país, o índice de morte entre os negros e pobres é altíssimo, desvelando também o aspecto de raça/classe, já que os negros estão, em sua maioria, na base da pirâmide social. E morrem justamente porque os pobres, nos Estados Unidos, não têm acesso à saúde. Ou a pessoa paga um seguro ou está morta. Não existe um sistema público capaz de dar suporte a toda essa gente. É por isso que muitos, mesmo doentes não procuram os hospitais. Sabem que se saem vivos, devem até a alma. E, como dever o que não têm? Lá, como cá, também o governo busca formas de salvar os ricos, colocando a conta para os trabalhadores. É o caso do pessoal do agronegócio que deverá ser beneficiado com uma ajuda direta da Casa Branca, podendo ainda reduzir o salário de pelo menos 250 mil trabalhadores estrangeiros que tem permissão temporária para ficar no país trabalhando nos campos. São trabalhadores essenciais porque, sem eles, a cidade não come. Ainda assim, serão penalizados para que os fazendeiros não percam lucros. É o uso cirúrgico de uma gente que o país odeia (os migrantes), mas da qual necessita. Eles que sobrevivam como puderem. Caso morram, amanha terá mais gente chegando e tudo bem. Outro drama que não encontra visibilidade é o dos imigrantes que estão presos nos centros de detenção em todo o país. Gente que não cometeu crime algum, unicamente tentou entrar no país e está confinado em prisões insalubres e violentas. E agora enfrentam essa pandemia sem qualquer preocupação por parte do governo. Tanto que as entidades de Direitos Humanos têm se manifestado em frente aos cárceres, exigindo que o Serviço de Imigração garanta a saúde das pessoas, embora sem sucesso. Inclusive, há cárceres exclusivos de crianças, separadas dos pais e sem cuidados. Ou seja, a teoria que sustenta a forma de enfrentamento do coronavírus nos Estados Unidos é a mesma levada no Brasil. Que se infecte logo a maioria das pessoas, que morram os doentes, os fragilizados, os criminosos e que sobrem só os “fortes”, os que passarem pelo vírus sem sintomas ou com sintomas leves. Assim, a economia não para e os ricos continuam acumulando lucros. Num mundo de sete bilhões de almas não importa para o sistema capitalista e seus controladores que pereçam um milhão de vidas. Elas são facilmente substituídas. E segue o baile. Essa lógica perversa encontra seguidores em todo o mundo. Alguns, por que acreditam mesmo numa “melhoria” da raça e outros porque acreditam cegamente nos seus líderes a ponto de disseminarem pelas redes sociais e nas suas relações interpessoais as mentiras que sustentam a racionalidade certeira do capital. No Brasil, um vídeo de uma moradora do interior de São Paulo, resistindo a um pedido de policiais para que fosse para casa, respeitando o isolamento social, conseguiu, em poucos minutos, expor os argumentos que sustentam uma espécie de insanidade, que só é para as gentes, não para os governantes. Segundo ela, o vírus é uma invenção dos chineses, com o apoio do PT, para derrubar Bolsonaro. Ou seja, ela crê, sem pejo, que foi criada uma pandemia mundial unicamente para atacar o presidente do Brasil. Cenas semelhantes se multiplicam não só no Brasil, mas com versões locais em outros países que adotaram a lógica do “morram logo”, tal como os Estados Unidos. E assim, o planeta vai, mergulhado numa loucura sem precedentes. Uma loucura muito bem dirigida e direcionada. Nas altas camadas dos governos, das multinacionais, das entidades da classe dominante, a vida segue sem novidades, com cada um pensando em como acumular mais lucro e mais poder nessa hora de desespero entre a maioria dos trabalhadores. Para eles, é hora perfeita. Deveria ser um bom momento para que os trabalhadores percebessem qual é o seu papel nesse mundo capitalista. Mas, ao que parece, em vez de aflorar a consciência crítica, o que mais cresce é o misticismo e o fundamentalismo. Sem os instrumentos para compreender em profundidade a realidade, um número expressivo de pessoas se volta para o céu, para o milagre, esperando que a saída venha de algum deus poderoso e não da revolta organizada da classe trabalhadora. Com o isolamento social e a disseminação exponencial de mentiras a situação fica ainda mais difícil de ser enfrentada. Apesar disso, há que atuar e trabalhar no sentido de desvelar a realidade. A tarefa cotidiana e permanente.
Cinco horas da manhã, o dia ainda dormia. O pai, zanzado no quarto na sua dança de arrumação. São pelo menos duas horas nessa função. Pouco posso fazer. Então, fui ver o documentário da jornalista Adriane Canan, “As rendas de Dinho”. Não pude ir ao lançamento e já havia tempos que andava curiosa por assistir. Ela me mandou o enlace secreto, aproveitei. O Dinho é um morador do Pântano do Sul que é considerado hoje um patrimônio histórico/afetivo do bairro, embora nem sempre tenha sido assim. Na sua história de vida ele mesmo lembra quando teve de ir embora de Florianópolis porque alguém na comunidade o considerava a vergonha do lugar. Ele é rendeiro, profissão sempre fadada às mulheres e que é marca registrada da ilha de Santa Catarina. E foi essa sua singularidade que atraiu o olhar da documentarista. O documentário traduz bem o espírito do Dinho. É terno, leve, alegre, colorido e profundo. Delicadamente vai enredando a renda da vida desse homem que é como um raio de sol na comunidade tradicional de pescadores. A partir da fala dele mesmo e das pessoas do seu entorno o filme desvela o caminho feito desde o mar do Pântano, passando por São Paulo, Canadá e depois a volta para casa. Outra vez em frente ao mar, os olhos nos cardumes,nos barcos e nas gentes. No Pântano, depois de tantas andanças, Dinho se viu perdido de alguns de seus mais importantes amores e a vida virou tristeza. Então lembrou que sabia rendar e começou a fazer renda na praia. A partir daí, seu riso aberto voltou e a vida recomeçou apesar da dor. O filme retrata esse homem e sua história de buscas, perdas e reencontros. Ele eterniza um ser que é também essência do Pântano, reconhecido e amado. Adriane Canan narra o local, mas consegue abarcar a universalidade do humano. Ela cristaliza a memória da nossa cidade e ainda oferece um presente: o Dinho, na sua singeleza e na sua capacidade de reconstrução. No rosa esvoaçante do vestido, no azul do mar e no riso de menino dança a alegria de existir e amar. Belo trabalho Adriane. Obrigada...