Alzheimer/Velhice

sábado, 11 de abril de 2020

O isolamento e o pai


O isolamento social tem cobrado seu preço aqui em casa. Misturado com a demência do pai o resultado é um desastre. Primeiro que os dias se converteram todos em domingo, com todo mundo em casa. E com mais gente circulando, o pai perde a centralidade da atenção. Fica com ciúmes e aí é um deus nos acuda. Agride todo mundo, perde a tramontana e fica num vai-e-vem sem fim, como um bicho acuado. Faz a volta na casa umas mil vezes, andando sem parar, e quando fica bem transtornado começa a se meter no meio das árvores, do arbustos, da plantação. Tudo isso é um risco tremendo, e tenho de ficar andando atrás dele porque se deixo sozinho ele pode cair e se machucar. Não aceita que eu segure seu braço, então só posso ficar como uma sombra, rezando para conseguir segurar se ele for ao chão.

Sem poder sair de casa, a rotina do pai se quebrou e com isso também quebra alguma coisa no cérebro, imagino eu. Nos primeiros dias eu ia inventando uma mentira ou outra, mas com os passar do tempo já fui perdendo os argumentos. E ele fica no portão, com os olhos num vazio cheio de desespero.

Existe uma tal síndrome do pôr-do-sol que se constitui num desejo irrefreável de sair, de "ir pra casa". E a única forma de fazer esse desespero passar é sair, caminhar, encontrar pessoas, distrair. Sem isso, vem a violência, a raiva, e a descompensação. isso tem seus reflexos durante o dia todo e fica ainda pior durante a noite. Aí mistura tudo. A aflição pelo vírus que aí está e que pode atingi-lo e também pelo estado de sofrimento que o confinamento tem causado.

Outro dia quando a rua parecia vazia de gente eu abri o portão e pensei: vou andar com ele uns metros e voltar.Mas qual, ele queria ir no barbeiro e como sabe o caminho foi me arrastando. Tive de usar todas as artes e sortilégios para fazê-lo voltar. Voltou emburrado e a emenda ficou pior que o soneto.

A ânsia por sair agora também aparece durante à noite e, do nada, ele levanta da cama e sai andando no rumo do portão. Se eu tranco a porta é um escândalo, então tenho de deixar sair. Procuro cobri-lo com bastante roupa quente, mas ele vai arrancando tudo. E eu tenho de ir recolhendo e tentando colocar tudo de volta, afinal, as noites são frias.Ele finca o pé no portão e não sai. Eu pego a sombrinha e abro, para tentar evitar o sereno. A cena é louca: na madrugada estrelada, eu com a sombrinha aberta no portão. É um terror digno de Stephen King. É o vírus, é a demência, é a possibilidade de uma gripe qualquer, uma descompensação maior. Tudo é sofrimento.

Um pouquinho de paz vem de manhã quando Rolando Boldrin consegue segurar sua atenção. É quando eu também consigo colocar em dia o trabalho, que igualmente me cobra tempo. E é uma dureza tentar concentrar depois de todas essas aventuras, sabendo que logo logo elas vão recomeçar.

Nesse turbilhão estou, já quase mergulhada na demência também. Porque lá fora tem Bolsonaro, tem Trump e tem uma gente ruim respaldando a selvageria dos feitores do capital. O pouco de sanidade me vem dos livros, os quais vou sorvendo quando possível, como se fossem pequenos oásis no deserto da solidão.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Cuba e suas prioridades



Hoje partiu para Barbados mais uma equipe das brigadas Henry Reeve, com 101 enfermeiras, para ajudar a pequena ilha do Caribe na sua luta contra o coronavírus.  Lá já são 56 infectados e uma morte foi registrada. E é sempre bom lembrar que Barbados é uma nação independente, mas que está ligada ao Reino Unido, tendo como chefe de estado a Rainha da Inglaterra. Com essa equipe já são 15 grupos de médicos e enfermeiros que saem de Cuba, num total de 700 pessoas, para prestar socorro médico nos mais diversos países do globo (15 até o momento, embora haja pedidos de mais 40). 

Essa é uma prática que o país vivencia desde o final dos anos 60. E porquê? Primeiro, porque inspirada na ação revolucionário do médico argentino Ernesto Che Guevara, que foi um dos revolucionários históricos da revolução cubana. Médico, ele nunca se furtou a atender a população quando fosse necessário. Depois, na África, igualmente, muitas vezes trocou o fuzil pela maleta de médico, garantindo atenção à população abandonada. Mais tarde, quando a ilha já formava sua primeira geração de médicos, as brigadas de ajuda tornaram-se sistemáticas. 

Assim, já são 60 anos de ação médica, com a participação de mais de 30 mil médicos, isso sem contar os demais profissionais sanitários como enfermeiros e agentes de saúde. 

Com a revolução em 1959, Cuba saiu da órbita dos Estados Unidos e passou a vivenciar um sistema próprio de governo no qual a educação foi pilar essencial. Junto com a formação dos cubanos a revolução foi estruturando também o sistema de saúde que é público, gratuito e universal. Os recursos para esse setor chegam a quase 30% do orçamento geral. Lá, o sistema de saúde conta com nove médicos para cada mil habitantes, bastante superior a países europeus, por exemplo, que tem uma média de 3 ou 4 médicos para cada mil habitantes. A preocupação com a saúde é tanta que nem mesmo durante o período especial, quando da queda da União Soviética, parceiro importante da ilha, jamais  governo fechou um hospital ou um posto de saúde. Pelo contrário. Quanto mais a ilha é atacada, mais o governo pensa em como proteger o seu povo, sendo bastante conhecido e reconhecido o seu programa de médico de família. 

A prevenção de doenças é prioridade e a população é instruída, tanto pelos médicos e enfermeiras, como pelos milhares de agentes de saúde, a se manter saudável. Os problemas com o bloqueio econômico são tantos que um corpo sadio é fundamental para o enfrentamento com o império. Cuba também mantém uma escola latino-americana de Medicina,na qual forma médicos, com estudantes vindos de vários países do continente e também da África. Isso faz com que o número de profissionais seja grande e permite o envio das brigadas por todo o planeta. É bastante conhecida a ação de Cuba durante o surto de Ebola na África, como também durante a crise da cólera no Haiti. Os médicos cubanos vão aonde ninguém quer ir. 

Atualmente, com a pandemia mundial do coronavírus a ilha socialista mais uma vez se diferencia de seu antagonista principal – os Estados Unidos. A primeira ação do governo estadunidense quando a crise eclodiu na Europa foi mandar 30 mil soldados, tropas militares, para sabe-se lá o quê. Cuba enviou e segue enviando médicos. 

Agora, quando a crise chegou também aos Estados Unidos, de novo é possível perceber as diferenças entre um sistema socialista, que garante saúde universal, pública e gratuita e o sistema capitalista/imperialista comandado pelos EUA. Lá, a pandemia segue sem controle, com mais de 300 mil infectados e quase 10 mil mortos (hoje, cinco de abril). As pessoas que não têm seguro saúde,somam mais de 40 milhões, estão entregues ao deus dará, e outros tantos milhões que possuem seguros de baixa cobertura também estão na mão. Qualquer atenção médica na rede privada estadunidense custa uma fortuna e há quem se recuse a ir para o hospital por medo da conta que será apresentada ao final. 

Essa é uma hora trágica para a humanidade e na grandeza desse drama humano fica muito fácil perceber o quanto o capitalismo é nocivo à maioria da população, aos trabalhadores. Dia após dia, vai se percebendo que para os governantes o mais importante é a roda da economia girar, com as pessoas ficando em segundo lugar. Donald Trump, por exemplo, sem pejo, disse que estará tudo bem se morrerem 100 mil estadunidenses. Será preço a pagar para que o capital siga se expandindo. Não há um plano para salvar as gentes, mas sobram planos para salvar bancos e empresas. 

Enquanto isso, a pequena e mal/dita Cuba socialista vai mostrando o que realmente é importante para seu governo e para o sistema que ali se plantou em 1959: sua gente, bem como os trabalhadores de todo o mundo. Mantém com segurança o seu sistema de saúde interno e ainda manda médicos pelo mundo todo, salvando vidas. 




domingo, 5 de abril de 2020

O jornalismo esperneia, mas não assoma



Já faz tempo que se ouvem vozes sobre o fim do jornalismo. Eu sempre defendi que não. Não morreu. Pode estar meio adormecido, solapado pelas empresas que preferem desinformar a formar opinião pública esclarecida e consciente. O jornalismo em si não tem nada a ver com isso. Ele não é um ser, é um fazer. E, como já ensinou Adelmo Genro, tem até uma forma de expressar a realidade como conhecimento e não apenas informação. O que pode estar em crise ou morto é o humano capaz de narrar a vida nesses termos propostos por Adelmo, partindo do singular e abarcando o universal. Ah, isso sim.  

Agora, nesses dias de pandemia, o jornalismo reapareceu com força total, a pondo de as emissoras de televisão aumentarem seu tempo no ar para horas e horas. Repórteres cruzam os caminhos trazendo informação para lá e para cá. É uma enxurrada de notícias e reportagens. Num tempo em que as redes sociais pareciam ter tomado o lugar das empresas de comunicação, a atenção voltou a focar nos veículos tradicionais, como se, de repente, só o jornalismo pudesse ser capaz de trazer a notícia verdadeira. O que, de certa forma, é verdade. Os jornalistas têm se esforçado. 

É fato que no campo da informação crua as emissoras estão indo bem. Passam os dados, os números, as notas dos governos, as orientações médicas. Tudo isso é muito importante. Mas, o jornalismo – e aí insisto em Adelmo Genro – não é só informação. Ele pode ser também conhecimento, e deve ser. É a função mais importante dele, oferecer possibilidades de compreensão da realidade para além da simples informação, ou da simples resposta das seis perguntas tradicionais do lead. 

O que se percebe é que, como o uso do cachimbo entorta a boca, a maioria dos jornalistas parece que esqueceu como é fazer o bom jornalismo. Aquele jornalismo que é também análise, impressão, descrição e narração. Mesmo na mídia alternativa, comunitária e popular esse tipo de jornalismo pouco existe, salvo raras exceções. No geral, os jovens jornalistas, malformados a partir do ideal liberal de “mostrar os dois lados” se espantam com textos que aprofundam os temas, que singularizam as histórias, que descrevem a vida na sua imanência. Espantam-se e, surpreendentemente rechaçam.  É uma catástrofe. Porque essa seria uma hora histórica, de retomar as boas formas de narrar.

Não é o que se vê e ao fim e ao cabo, vamos mudando de canal, ou saltando as páginas de jornalismo alternativo, e tudo o que vemos é a informação asséptica, que não tem lado, que não se compromete, que não consegue conduzir o leitor/espectador para a atmosfera universalizante do fato singular. Ouve-se o morador, o governador. Ouve-se o comerciante, o médico. Ouve-se o que espera tratamento, ouve-se o enfermeiro sem máscara. Mas nada de oferecer elementos de análise que permitam o leitor/espectador compreender o cenário, o pano de fundo, as contradições.

Eu me alegrei com a retomada do espaço jornalístico, mas já perdi a esperança. O espaço aumentou, mas o jornalismo segue esquecido. Faltam os bons narradores da vida, faltam os jornalistas capazes de contar uma boa história, sobram os liberais formados pelos manuais de jornalismo copiados dos Estados Unidos.  

É desanimador! Ainda assim, vamos resistindo...