O pai é como um dínamo, e não para um minuto sequer. Acorda as cinco, cinco e meia da manhã e passa o dia inteiro ligadão. Anda pra cá e pra lá milhões de vezes, dá dezenas de voltas no jardim e caminha do alpendre para o portão o tempo todo. Vai até o muro e pega os sacos de lixo que estão descansando esperando o lixeiro, e se vem com eles pra dentro de casa. Se a gente não vê ele leva pra dentro do quarto e esconde. - Pai, isso é lixo. Deixa lá que os moços do caminhão vêm pegar amanhã. - Que moços? - Os que coletam o lixo. - Ah, tá. E lá se vai ele de volta com os saquinhos. Dali uns dez minutos a cena se repete, tudo igual. Até que ele arranja outra distração. Dentro de casa nada lhe escapa, mexe em tudo. Como eu tenho muitas coisinhas pelos armários, lembranças de viagem, ele tem um universo de tarecos para surrupiar. Pega as pedrinhas do Pacífico e enfia nos bolsos, os saquinhos de areia da Núbia, os bonequinhos chineses, as figurinhas do Jornadas nas Estrelas, o senhor Yoda, o jesusinho do presépio, e vai escapulindo para o quarto com toda a sorte de tarecos. Também se farta na fruteira onde pega laranjas, bananas, e até os grandes maracujás que não consegue acomodar no bolso, mas ainda assim sai de fininho com eles na camisa que transforma em sacola. Chegando ao quarto ele guarda nos lugares mais inauditos. Eu deixo que ele faça seu circuito de pequenos “furtos”, sem atrapalhar a sua viagem. Ele se distrai. No armário da cozinha ele fuça tudo que há, nos talheres, nas panelas, nos pratos, nos potinhos de plástico. Desarruma tudo e vez quando sai com alguma coisa escondida na camisa. Também mexe nos livros e no saco do pão. É uma faina incansável. E assim passa o dia amealhando coisas, carregando como se fosse uma formiguinha. Quando chega o fim do dia o quarto dele é um universo, uma espécie de Nárnia onde as coisas mergulham e ficam invisíveis. É hora então de ele “trabalhar”, que é mexer nos papéis que mantém na mesa. Mexe, mexe, mexe, rasga, faz barquinho, fica entretido. Lá pelas dez da noite eu consigo colocá-lo na cama, com muito custo. Ele deita, esticadinho, eu o cubro com o edredom, dou o beijo de boa noite e digo: “agora fecha os olhos e dorme”. Ele obedece. Espero que o sono fique mais pesado e então começo silenciosamente a catar as coisas perdidas. Abro o guarda-roupa e vou coletando. No meio das roupas, nas gavetas, dentro de meias, embaixo das cobertas, ajeitadas em pacotinhos, sempre tem alguma coisa. Outras desaparecem mesmo, por dias, e eu vou encontrar quando já nem mais tenho esperança de vê-las novamente. Elas simplesmente surgem, como mágica. Feita a recolha trato de sair, pé ante pé, de fininho. Antes de fechar a porta dou a última olhadinha. Ele está ressonando, bonitinho. Ao lado dele vejo sacis, duendes e até alguns etezinhos, que ficam por ali com seu amiguinho surrupião. O quarto é um reino encantado. Tudo parece bem, a noite vai se alongando e eu finalmente vou dormir.
Quem estuda história sabe. Desde os tempos mais remotos, quando o ser humano decidiu dividir-se em classes, há os que dominam em nome de suas demandas particulares e os que são dominados, geralmente conformando a maioria. Nem sempre foi assim, certo? Houve uma infinidade de povos que existiu em sociedades livres, comunitárias, de mando compartilhado, cooperativo, nas quais as demandas de todos eram levadas em conta. E até hoje podemos encontrar entre algumas nacionalidades originárias essa forma de ser e estar no mundo, ainda que ilhadas pelo capitalismo. Dominar em nome de interesses particulares não é coisa fácil. Há que ter todo um trabalho cultural, ideológico, de disseminação de mentiras, que de tantas vezes ditas, se fazem verdades. É preciso fazer a maioria das pessoas acreditar que os interesses de uns poucos são os interesses de todos. E há que ter as forças da repressão para empurrar, pela força bruta, as mentiras feitas verdades àqueles que não foram enganados. É assim que ao longo da história humana as coisas aconteceram e seguem acontecendo. Nesse processo, sempre que os dominados se levantam em luta contra todas as dores que lhe são impostas, a saída encontrada pelos que dominam em interesse próprio é o extermínio de quem luta, para que não apareçam como laranjas podres a contaminar toda a gente com a verdade que se impõe. Então, começam as campanhas de mentiras e difamações contra os rebelados: “bandidos, subversivos, comunistas, loucos, desagregadores da boa ordem, insatisfeitos, baderneiros, etc...”. E se isso não basta para que uma massa significativa sirva de anteparo à rebelião, chegando ao ponto de matar seus vizinhos, parentes e amigos, acreditando piamente que os rebelados são “do mal, do demo, do capeta”, então vêm as forças da repressão: tiro, porrada e bomba. Essa é uma receita que se repete, e se repete, e se repete. Mas, se é assim, porque então as pessoas se levantam em luta? Ora, porque chega uma hora na qual a mentira já não mais se sustenta e as condições da vida material das pessoas ficam tão horríveis que não há mais saída. Os filhos não têm escolas, não têm saúde, não há segurança, a morte ronda pela miséria, pela fome, pela violência social. Como num átimo, as pessoas se dão conta de que os interesses defendidos pelos poderosos não lhes dizem respeito. Essa é a compreensão de boa parte do povo chileno, agora mesmo, em luta contra um estado que lhes tirou tudo. Eles observam e vêm que há uns poucos que juntam riquezas sem fim, enquanto a maioria empobrece sem parar. Essa é também a compreensão de grande parcela do povo boliviano, que tinha um governo que apresentava sensibilidade social, garantindo que pelo menos parte das riquezas do país fossem investidas no próprio país, servindo a toda gente. Por isso os bolivianos não aceitam o golpe. Sabem que os que estão a clamar por democracia em nome de deus serão bem piores, e que governarão para si e para garantir seus interesses particulares. Aos que não têm nem a máquina ideológica, nem as forças da repressão, resta juntar-se e, a partir daí, lutar. Quem decide enfrentar o horror sabe bem o que arrisca: nada menos do que a vida. Porque o poder não tem piedade, nem compaixão, nem clemência. É o que podemos ver no Chile, com os soldados do governo atirando para matar, ou, suprema crueldade, cegar. É o que vemos na Bolívia, com os mortos se acumulando. Morrem, fatalmente, morrem sempre os do lado da luta pelas demandas coletivas. Os que se atiram frente à repressão em nome de um mundo que possa ser bom e bonito para todos. E são esses mortos os que garantem as conquistas. É assim que é. E é por causa deles que o mundo avança. São os heróis dos trabalhadores, das mulheres, dos negros, dos índios, de toda a gente que começa a enxergar. Caem, estão mortos. Mas, desde a beirada de suas tumbas, se junta todo um povo, que se levanta e caminha. E é assim que os mortos levantam e caminham também. Hoje, no Chile, na Bolívia, no Equador, na Colômbia, nas ruas do Rio de Janeiro, nas veredas das terras indígenas do Brasil, no campo, tombam os mortos das nossas fileiras. Nós os reverenciamos, os choramos, e os colocamos para andar. Que seja assim, sempre. Para os que ficam vivos, o poema de César Vallejo: Massa Terminada a batalha, E morto o combatente, veio até ele um homem E lhe disse: “Não morras, te amo tanto”. Mas o cadáver, ai! Seguiu morrendo. Vieram mais dois e repetiram: “Não nos deixe! Valor! Volte à vida!” Mas o cadáver, ai! Seguiu morrendo. Acudiram a ele vinte, cem, mil, quinhentos mil Clamando” “tanto amor e não poder nada contra a morte”! Mas, o cadáver, ai! Seguiu morrendo. Rodearam-no milhões de indivíduos Com um pedido comum: “Fica aqui, irmão!” Mas o cadáver, ai! Seguiu morrendo. Então, todos os homens da terra o rodearam, Os viu o cadáver triste, emocionado; Incorporou-se lentamente Abraçou o primeiro homem, pôs-se a andar.