quarta-feira, 20 de novembro de 2019

O pai e a quadra das coisas perdidas


O pai é como um dínamo, e não para um minuto sequer. Acorda as cinco, cinco e meia da manhã e passa o dia inteiro ligadão. Anda pra cá e pra lá milhões de vezes, dá dezenas de voltas no jardim e caminha do alpendre para o portão o tempo todo. Vai até o muro e pega os sacos de lixo que estão descansando esperando o lixeiro, e se vem com eles pra dentro de casa. Se a gente não vê ele leva pra dentro do quarto e esconde.

- Pai, isso é lixo. Deixa lá que os moços do caminhão vêm pegar amanhã.
- Que moços?
- Os que coletam o lixo.
- Ah, tá.

E lá se vai ele de volta com os saquinhos. Dali uns dez minutos a cena se repete, tudo igual. Até que ele arranja outra distração. 

Dentro de casa nada lhe escapa, mexe em tudo. Como eu tenho muitas coisinhas pelos armários, lembranças de viagem, ele tem um universo de tarecos para surrupiar. Pega as pedrinhas do Pacífico e enfia nos bolsos, os saquinhos de areia da Núbia, os bonequinhos chineses, as figurinhas do Jornadas nas Estrelas, o senhor Yoda, o jesusinho do presépio, e vai escapulindo para o quarto com toda a sorte de tarecos. Também se farta na fruteira onde pega laranjas, bananas, e até os grandes maracujás que não consegue acomodar no bolso, mas ainda assim sai de fininho com eles na camisa que transforma em sacola. Chegando ao quarto ele guarda nos lugares mais inauditos. Eu deixo que ele faça seu circuito de pequenos “furtos”, sem atrapalhar a sua viagem. Ele se distrai.

No armário da cozinha ele fuça tudo que há, nos talheres, nas panelas, nos pratos, nos potinhos de plástico. Desarruma tudo e vez quando sai com alguma coisa escondida na camisa. Também mexe nos livros e no saco do pão. É uma faina incansável. E assim passa o dia amealhando coisas, carregando como se fosse uma formiguinha. 

Quando chega o fim do dia o quarto dele é um universo, uma espécie de Nárnia onde as coisas mergulham e ficam invisíveis. É hora então de ele “trabalhar”, que é mexer nos papéis que mantém na mesa. Mexe, mexe, mexe, rasga, faz barquinho, fica entretido. Lá pelas dez da noite eu consigo colocá-lo na cama, com muito custo. Ele deita, esticadinho, eu o cubro com o edredom, dou o beijo de boa noite e digo: “agora fecha os olhos e dorme”. Ele obedece. 

Espero que o sono fique mais pesado e então começo silenciosamente a catar as coisas perdidas. Abro o guarda-roupa e vou coletando. No meio das roupas, nas gavetas, dentro de meias, embaixo das cobertas, ajeitadas em pacotinhos, sempre tem alguma coisa. Outras desaparecem mesmo, por dias, e eu vou encontrar quando já nem mais tenho esperança de vê-las novamente. Elas simplesmente surgem, como mágica. 

Feita a recolha trato de sair, pé ante pé, de fininho. Antes de fechar a porta dou a última olhadinha. Ele está ressonando, bonitinho. Ao lado dele vejo sacis, duendes e até alguns etezinhos, que ficam por ali com seu amiguinho surrupião. O quarto é um reino encantado. Tudo parece bem, a noite vai se alongando e eu finalmente vou dormir.  

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