Alzheimer/Velhice

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

A nova escravidão


Sempre que se fala em escravidão, vem à mente a cena do negro, acorrentado, vindo para a América nos navios negreiros do século 17 e 18. Naqueles dias, durante o processo de invasão e dominação dos territórios africanos e americanos, esse era o grande negócio. Usar as pessoas como mão de obra barata para a acumulação de riqueza. Portugal e Espanha desbravaram os novos espaços, destruíram as comunidades existentes e implantaram o saque. A Inglaterra dominou a rota e o mercado do tráfico. Tudo era uma grande operação comercial destinada a enriquecer uns poucos. Esse longo processo foi o responsável pela dizimação dos povos originários no chamado “novo mundo”, nossa Abya Yala, e pela desagregação comunitária nos espaços do continente africano. E foi essa movimentação de conquista de território e escravidão que deu força ao sistema capitalista. A tal da revolução industrial, tão decantada pelos ingleses, nunca teria existido se não fosse esse quadro de exploração, dor e miséria. Para que a Europa se fizesse rica, a América e a África tiveram de ser destruídas.

Durante séculos se lutou contra a escravidão e precisou muito sangue para que essa prática fosse abolida. E, na verdade, quando o sistema escravista foi finalmente varrido das Américas, o motivo foi igualmente econômico. O escravo passou a ser um problema para o sistema capitalista que se consolidava. Os “donos” tinham muita despesa com os escravos e ainda precisavam cuidar de suas “propriedades”. Melhor mesmo é que as pessoas se virassem sozinhas. Foi aí que veio a “libertação”. Os escravos passaram a ser pessoas livres que, então, poderiam vender sua força de trabalho. Assim, os fazendeiros e empresários não precisariam mais ter qualquer despesa para sustentar a mão de obra. Cada um que se sustentasse a si mesmo. Foi perfeito. Assim, nasceram as fábricas e a vida urbana, com as levas de gente explorada formando vilas miseráveis próximas aos locais de trabalho.

O tempo passou e a escravidão virou apenas tema de filme e romance, como se fosse uma mera lembrança do passado. Ledo engano. Nas entranhas do mundo, essa prática de vileza seguia sendo usada. Ainda assim, sempre foi combatida pelos movimentos de direitos humanos e não são poucos os episódios de “libertação” que são empreendidos em fazendas ou empresas. Mesmo nas metrópoles, como São Paulo, por exemplo, a cada tempo pipocam os casos de estrangeiros sendo mantidos como escravos em vários tipos de negócio. Usar as pessoas como coisas segue sendo uma prática muito comum.

Mas, se esses casos, aparentemente isolados, são denunciados e vistos como um ataque aos direitos humanos, isso não significa que o sistema capitalista – que é um sistema de exploração humana – não tenha encontrado outras formas de escravizar e dominar. Na verdade, é como se a mesma história se repetisse ad infinitum.

Se no passado, as grandes navegações, que exploraram novas terras, permitiram a invasão e o saque desses lugares. Hoje, as cruzadas antiterroristas cumprem o mesmo papel. Quem denuncia essa situação é o jornalista Antony Loewenstein, no livro “Capitalismo do desastre: uma radiografia da catástrofe”. Segundo ele, toda essa política de destruição dos países do Oriente Médio, iniciada na chamada “Primavera Árabe”, nada mais é do que o novo jeito de garantir escravos para a movimentação do sistema. Ele mostra que empresas multinacionais como a G4S, Serco e Halliburton, angariam elevados lucros com a calamidade em países como o Afeganistão, Iraque, Síria, Líbano, Haiti e Nova Guiné. E qual é o negócio dessas empresas? Prisões privadas para refugiados de guerra.

Numa entrevista à jornalista estadunidense Amy Goodman, Loewnstein contou como isso acontece. “Essa empresas montam enormes armazéns nas zonas de guerra, que servem como centros de detenção de refugiados e requerentes de asilo. Quando os holofotes se apagam, e as ONGS deixam de ajudar para passar à próxima catástrofe, essas empresas aparecem, com funcionários recebendo gordos salários para institucionalizar a escravidão. Chegam com a promessa de recuperar os países e o fazem com a indústria da escravidão”.

Segundo o jornalista, armazenar refugiados está sendo um dos negócios mais lucrativos do século. Um exemplo dado por ele é o da empresa Transfield Services, que administra - com dinheiro do governo da Austrália - um centro de detenção na Papua Nova Guiné. Lá, perto de 90% dos presos são refugiados, que vivem em condições desumanas, mulheres são violadas e ninguém pode entrar para ver as condições dos prisioneiros. Eles vivem em situação de escravidão e prestam serviços. Ou seja, seu trabalho vira lucro para a empresa, enquanto eles apenas sobrevivem, nas piores condições.

Ele também observou esse mesmo sistema em prisões dentro dos Estados Unidos, como uma do estado de Geórgia, que é administrada pela empresa Corrections Corporation of America. O sistema é o mesmo. Centenas de presos – no geral negros e pobres - servindo como escravos. “E lá dentro é o inferno. Direitos Humanos não existem”. E, para a sociedade, esse sistema parece ser perfeito, pois uma boa parte apoia. Tanto que o atual candidato à presidência dos EUA, Donald Trump, fala abertamente que é necessário que os EUA se livrem de 11 milhões de imigrantes em situação irregular. E aí, a indústria da prisão privada parece ser a solução perfeita. Conforme Anthony, empresas como a CCA e a GEO Group, que administram prisões privadas nos EUA e fora deles, tiveram lucros de mais de 40 milhões de dólares nos últimos anos. Para se ter uma ideia do volume do negócio, nos Estados Unidos, são detidos 34 mil refugiados a cada noite. Agora imaginem esses exércitos trabalhando e produzindo lucro, sem receber salário. É perfeito e legal!

Em outubro de 2015, durante uma grande marcha contra a violência policial realizada na cidade de Nova Iorque, outro jornalista, Chris Hedges, que recentemente lançou um livro chamado “O império da ilusão: o fim da alfabetização e o triunfo do espetáculo” , também denunciou essa nova fase da escravidão moderna concretizada nas prisões privadas. Segundo ele, a lógica que está colocada para o mundo é a do fim da alfabetização para os pobres, a retirada do direito à educação, para que eles venham a se tornar os potenciais “usuários” das cadeias privadas, servindo assim de mão de obra para a geração de lucros. "Há maridos e esposas separados, às vezes para sempre, de seus cônjuges. Há irmãos e irmãs que foram dilacerados, mães e pais que estão trancadas atrás das grades, cujas vidas minúsculas foram destruídas, e crianças cujas infâncias foram roubadas”.

Na sua fala aos nova-iorquinos ele insistiu: “Clamamos por todos os que se tornaram invisíveis, os que desapareceram por trás dos muros da prisão, que se tornaram presas do estupro, da tortura, do espancamento, do isolamento prolongado, da privação sensorial, da discriminação racial, das gangues de cadeia, do trabalho forçado, da comida podre, sem cuidados médicos, crianças presas com adultos, prisioneiros forçados a tomar medicamentos para induzir letargia, pouco ou nenhum aquecimento e ventilação, com décadas penas para crimes não-violentos e violência endêmica. Há que condenar um Estado que perpetua esse abuso”.

Ele também insiste que o encarceramento hoje é um negócio extremamente lucrativo e não são apenas as administradoras de presídio que ganham com o trabalho dos presos. Há as que fazem as chaves, as empresas de telefonia, de aparelhos de segurança, de alimentos, de roupas de cama, enfim, tudo o que gira em torno dos complexos. Hedges denuncia também que são os lobistas de empresas como a Corrections Corporation of America, os que escrevem as leis que asseguram penas mais longas para crimes comuns, tudo isso para encher as prisões. “Nesse pool de empresas estão as que chamamos de cumplices da nova escravidão: Chevron, Bank of America, IBM, Penney, Sears, Wal-Mart, Eddie Bauer, Wendy, Procter & Gamble, Johnson & Johnson, Motorola, Caterpillar , da Microsoft, Texas Instruments, Pierre Cardin e Target”.

Quem vê na televisão os debates sobre a redução da maioridade penal pode pensar que há uma grande preocupação nacional com relação á segurança das pessoas, mas não é nada disso. Todo esse debate está ligado à logica da nova escravidão. Tanto que na rabeira dessa proposta vem também a ideia dos presídios privados, afinal, como alegam alguns: “bandido tem que trabalhar para pagar o estado”. Muito poucos se importam em saber se os que estão na prisão são de fato, bandidos.

No Brasil, segundo dados do Ministério da Justiça, existem mais de 600 mil encarcerados (a quarta maior população carcerária do mundo), 200 mil a mais do que o próprio sistema suporta. Esse número cresceu 80% nos últimos dez anos, o que mostra uma política cada vez mais forte de penas de reclusão. Notem que 41% dos presos estão em situação provisória, ou seja, sem julgamento. E, conforme informações Conselho Nacional de Justiça, pelo menos 20 pessoas podem estar presas por puro “esquecimento”, ou seja, já cumpriram a pena, mas o sistema não liberou.

Os dados da Infopen são claros: 67% dos presos são negros, 56% são jovens e 53% não concluíram o ensino fundamental. Três únicos delitos são os responsáveis pela prisão de mais de 59% deles: tráfico (27%), roubo (21%) e furto (11%). Ou seja, os verdadeiros bandidos ou são poucos ou não foram pegos.

E justamente a tal da superlotação do sistema carcerário que tem levantado a ideia das prisões privadas. Tudo feito no jogo de cena do legislativo, com discursos bem articulados de defesa do cidadão. Desde 2012 que se vem tentando passar uma lei que permita a criação desses armazenamentos privados de pessoas, ainda sem sucesso. Ainda assim já existem experiências como a da Penitenciária Industrial do Paraná, que é administrada como uma empresa desde 1999. Conforme informações da Pastoral Carcerária Nacional, outras 29 unidades já atuam de maneira privada dentro da proposta das PPPs, as Parcerias Público-Privadas, um eufemismo criado para respaldar a nova escravidão. Ou seja, a administração é pública, mas os demais serviços são privados. E o consenso que a mídia cria sobre isso é de que lá, os presos trabalham e são produtivos. Ah, que bom, dizem os bons cristãos!

É fato que as prisões são hoje mero depósito de gente, sem chance alguma de ressocialização, e esse tem sido o principal argumento a favor da “profissionalização” dos presos. Mas, o que não se problematiza é justamente o reconhecimento sobre quem é o preso e porque ele está encarcerado.

Conforme as denúncias levantadas e comprovadas pelos jornalistas estadunidenses, em nível mundial a lógica que comanda a proposta de privatização dos presídios é a da geração de lucros para algumas empresas, com o uso de mão de obra escrava. Por isso, em boa parte dos países se legisla na defesa de novas leis, penas longas e, principalmente, na constituição de novas “figuras” que precisam ser tirada das ruas por oferecem risco à sociedade: refugiados, imigrantes e terroristas (que são os militantes sociais). Tudo isso articulado para que se encham as prisões.

Não bastasse isso, ainda há o sistemático processo de emburrecimento das gentes com o fechamento de escolas e a privatização da educação.

Ou seja, voltamos aos velhos tempos em que apenas a aristocracia se ilustrava, enquanto gerenciava seus escravos.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

24 dias de greve de fome


Hoje completam 24 dias que militantes ligados a diversos movimentos sociais brasileiros realizam uma greve de fome em frente ao Superior Tribunal Federal, reivindicando que sejam colocadas em votação as ações que questionam a legalidade da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após julgamento de segunda instância, etapa em que o acusado ainda poderia apresentar recursos sobre sua inocência. Tudo o que querem é que o STF decida de uma vez se a prisão é ou não é constitucional. Eles entendem que se os tribunais são céleres para prender o ex-mandatário, porque não podem ser céleres para decidir essa questão? 

Sete pessoas se mantém firmes na greve, apesar de uma delas ter passado mal durante um ato em frente ao STF há dois dias. Ainda assim, depois de medicada Zonália Neres dos Santos, militante do MST do Mato Grosso do Sul, voltou ao movimento. Com ela estão Frei Sérgio Gorgen, Rafaela Alves, Vilmar Pacífico, Jaime Amorim, Luiz Gonzaga (Gegê) e Leonardo Soares. Todos já apresentam visíveis consequências no aspecto físico, mas a presidente do STF em nenhum momento se mostrou inclinada a discutir o mérito da prisão de Lula. 

Roberto Malvezzi, da Comissão Pastoral da Terra, que acompanha o sacrifício dos trabalhadores, lembra que a greve de fome sempre foi arma de pessoas de extrema grandeza humana. “Recorreram a ela Gandhi, pela libertação da Índia, Martin Luther King, pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, Mandela, pelo fim do apartheid na África do Sul, índios Mapuche dentro da prisão, pela liberdade de seus prisioneiros e pela defesa de suas terras, assim por diante. Aqui no Brasil, Frei Luiz Cappio fez duas longas greves de fome em favor da distribuição da água no Nordeste por adutoras simples e captação da água de chuva, contra o projeto faraônico dos imensos canais que favorecem mais às empreiteiras que ao povo necessitado de água”.

Malvezzi entende que uma greve de fome é também um ato violento e amoroso. Primeiro porque coloca a vida mesmo em risco, e segundo porque a vida em questão nunca é a do outro, mas a de quem se propõe a esse ato de grandeza. “Essas sete pessoas em greve de fome dizem que o Supremo Tribunal Federal não cumpre com suas prerrogativas, joga pessoas na prisão antes que possam esgotar todos os recursos da defesa e jogam o país na instabilidade jurídica e política. Enfim, sujeitam qualquer brasileiro aos arbítrios da vontade individual de algum juiz, ou mesmo de um coletivo de instância menor”.

A greve de fome iniciada há 24 dias é parte da mobilização de petistas e militantes do movimento social pela libertação de Lula. Enquanto a vigília segue em frente ao STF em Brasília, em Curitiba mantem-se também a rotina do acampamento que diariamente saúde o ex-presidente de manhã e à noite. 

Os militantes entendem que o judiciário brasileiro se utiliza de dois pesos e duas medidas, na medida em que faz vistas grossas às acusações contra políticos de outros partidos, como o PSDB, MDB, e insiste na perseguição ao PT. Há poucas semanas o deputado federal João Rodrigues (PSD), que estava preso também por suposto crime numa lei de licitação, foi colocado em liberdade pelo STF, atendendo a uma liminar. Com isso, o deputado está apto para disputar sua reeleição, direito que tem sido negado a Lula.

A greve de fome em frente ao STF busca pressionar os ministros para que definam de maneira igual a situação de Lula, para que ele possa concorrer à presidência. Mas, ao que parece, o sacrifício dos militantes não será levado em consideração. Não há indícios de que a presidenta do tribunal, ministra Carmem Lúcia, decida por realizar a discussão sobre a legalidade da prisão de Lula, pelo menos não até outubro. 

Enquanto isso, os trabalhadores, que tem apenas seus corpos para oferecer, estão definhando a olhos vistos. Será necessário que alguém perca a vida para que todos possam entender que o judiciário é uma instituição de classe? E, é claro, uma instituição da classe dominante, que,  atuando como avalista dessa nova modalidade de golpe que avança pela América Latina, não terá qualquer compaixão pelas vidas que estão sendo colocadas em risco. 

Um simples ato para o colégio de ministros pode definir vida ou morte. Mas, pela forma como o judiciário vem atuando ao longo de todo o processo é pouco provável que ceda. A proposta da classe dominante é não permitir que Lula concorra. Depois das eleições, tudo pode mudar. Mas, agora, não. 

Temo pela vida dos trabalhadores, particularmente pela de um que me é caro – porque o conheço pessoalmente desde anos   – Frei Sérgio Gorgen. Um homem dedicado à vida dos caídos, um guerreiro na luta pela terra, pelos direitos humanos, pela vida. E, assim como ele, cada um e cada uma: Rafaela, Zonália, Vilmar, Jaime, Gegê e Leonardo, que certamente tem amigos, filhos, pais, seres que os amam, e que agora passam pelo drama de verem os seus amados em risco, por conta de que um tribunal não quer discutir uma ação. Uma única ação. 

No triste cenário do golpe brasileiro, é pena que nem mesmo a vil democracia burguesa possa se fazer. 

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Sobre ser da fronteira

Foto: na beira do rio Uruguai/São Borja.

Eu nasci na fronteira entre Brasil e Argentina, e desde bem menina já sabia falar três línguas: o português, o espanhol e o portunhol. Estudei no Passo, o bairro de São Borja que fica na beira do rio, lugar de onde saía a balsa para Santo Tomé. Meus pés de menina pisavam as pedrinhas e a lama do Rio Uruguai quase todos os dias, e no fim de semana, com o pai, passávamos para o outro lado para comprar batatada e balas Mumu. Em épocas de enchente, corríamos para a beira do rio para ver passar as madeiras, conduzidas pelos paysanos e gaúchos, que as manejavam gritando: ibibibiuuuuururu.

Na fronteira, aprendi que a vida mesma não tem divisão. Argentinos e uruguaios eram como nós, filhos de uma mesma pampa, com história comum, com costumes comuns. São Borja, Uruguaiana, Quaraí, cidades irmãs de Santo Tomé, Paso de los Libres, Artigas. Nunca pude perceber onde cada uma começava ou terminava, ainda que as aduanas e os milicos de cara amarrada interpusessem paradas e rituais. A pampa é quase um estado de espírito. Está em nós e não lá fora.

Aprendi a ser latino-americana assim, ainda bem niñita, nesse enfrentamento diário com a vida, com a história e com a cultura. Ora tomando mate com leite, ora amargo, enchendo o pão com doce de leite, ou tomando limonada, comendo matambre, milanesa, dançando vanerão e chamamé. Quando comecei a entender o mundo, então, já estava tomada pela Pátria Grande. Não poderia ser diferente. Cada voz argentina era de um irmão. E aos argentinos e uruguaios foram se somando os bolivianos, chilenos, paraguaios, colombianos, peruanos, equatorianos, venezuelanos, cubanos, nicas, guatemaltecos, hondurenhos, mexicanos, caribenhos... todos e cada um.

Mas, é bom que se esclareça. Há dois tipos de fronteiriço. Os que ocupam as canhadas para delas se apossar (os patrões) e os que, sem nada além da força de trabalho, vivem nos descampados a dura lida do existir (os trabalhadores). Os primeiros não se ocupam de encontros humanos, são produtores de mercadoria, caçadores do lucro. Já os segundos veem o território como um amplo espaço por onde podem andar e viver, enredados com os hermanos, na mesma faina da manutenção da vida. Esses, trabalhadores, são seres amalgamados de horizontes diversos, e têm vários mundos girando dentro de si. Por conta das mesmas necessidades, não pode lhes caber preconceito, não pode lhes caber o ódio, não pode lhes caber o medo do outro. Porque estão também tecidos de outridades, o tempo todo e todo o tempo.

A única forma de mudar a forma amorosa de um fronteiriço é inventar um inimigo. E é assim que se fazem as guerras. Os grandes forjam sonhos de conquista e disseminam a ideologia do outro, no outro lado, como inimigo. Assim, aquele que até ontem tomava mate com a gente vira um monstro a quem temos de eliminar. A guerra é dos grandes, mas somos nós os que entregamos os corpos.

Amigos fronteiriços. Não há fronteiras. Tudo o que existe são desenhos pintados pelos que estão no poder. Assim se balcanizou a américa baixa. Pela ganância e pelo desejo de poder de uns e outros. Não fosse isso hoje seríamos todos patriagrandinos, filhos do mesmo continente. Com nossas particularidades, é fato, mas cheios dessa universalidade abyayálica que nos iguala. Toda terra nos pertence e por ela temos o direito de andar.

Quase 70 milhões de pessoas estão agora, agorinha mesmo, enquanto lês esse texto, saindo de sua terra ancestral. Caminham não porque querem – como eu, criança, indo buscar balinhas Mumu - mas acossados por guerras, fome, medo, ódio, engano, incompreensão. Carregam seus filhos, tralhas e esperanças. Tudo o que querem é um olhar doce, uma mão amiga, um pão, e a compreensão de que somos todos um pequeno gênero humano.

Que as pessoas que vivem nas fronteiras não caiam no conto dos latifundiários, dos empresários, dos gananciosos, dos comerciantes, dos que estão no poder. Não acreditem que o outro – igual a ti - é o inimigo. O inimigo é bem diferente. É o que te explora e te consome aí mesmo, no teu lugar. O que rouba tua força de trabalho, o que te incita a lutar guerras por eles, guerras que nem sequer podes entender.

Nós, os trabalhadores, temos de fazer aflorar a consciência de classe, ficar junto daquele que sofre o mesmo que nós, ainda que ele mesmo não perceba. Não nos deixamos levar pela invenção de um inimigo imaginário. O outro, que sofre, é meu/teu irmão. Com ele enfrentaremos a classe dominante. Com ele destruiremos o capital.

Se eu o renego, se queimo suas roupas, se maltrato seus filhos, estou dando linha para os que nos temem. Esses que sabem, que se estivermos juntos, ficamos mais fortes e podemos mudar o mundo. Por isso nos dividem e nos afastam. Não vamos temer o migrante, o que caminha, o que foge, o que procura vida melhor. Vamos travar com ele aliança e virar o mundo “patas arriba”.

O fronteiriço não pode erguer cercas, nem muros. O fronteiriço, por conter tantos, tem de ser ele mesmo espaço de comunhão.

Por fim, o fato é que nós, os trabalhadores, somos todos fronteiriços, sempre à beira de algum alambrado. E, como diria Victor Jara, é tempo de desalambrar.