Possivelmente dois trabalhadores |
Num desses filmes de roliude chamado “Django Livre” há um personagem que espelha claramente a cara feia desse nosso mundo eivado da herança colonial e escravocrata. É o velho negro, mordomo do senhor de escravos, que tripudia dos negros da senzala e goza de prazer quando os vê passar pelas terríveis dores da tortura. Ele, como negro, e convencido da sua “inferioridade”, não suporta ver um negro livre ou um negro que se rebele contra o horror. Então, de livre vontade assume a postura do opressor. É um servo voluntário, arrastando-se atrás do patrão, tentando abocanhar as migalhas que caem da mesa colonial. Pode-se compreender que aquela seja a estratégia que ele desenvolveu para permanecer vivo, mas não é possível deixar de odiá-lo. E o final do filme representa bem isso. Ou estamos com os nossos, com nossa classe, ou não estamos.
O mesmo sentimento me invadiu ontem ao ver centenas de comentários sobre a ação de alguns latifundiários, acompanhados de populares, no Rio Grande do Sul, contra os apoiadores da caravana do Lula. Uma cena em particular atraiu mais ferozmente os comentários dos servos voluntários de plantão: a de um jovem agricultor dando de relho em um sem-terra. Imediatamente me veio a cena do filme, quando Jango está sendo torturado e o velho mordomo vem tripudiar dele. Um horror. Digo isso porque tenho plena certeza de que mais de noventa por cento das pessoas que divulgaram a foto com comentários de ódio contra os sem-terra ou contra os apoiadores de Lula certamente não são donos de terra, nem donos de meios de produção. São os mordomos. Ou seja, tal qual aquele sem-terra são obrigados a vender sua força de trabalho para viver. São da mesma classe.
Não, eu não gosto do Lula. Penso que o governo petista, ao longo dos anos que esteve no poder, foi bastante responsável pela classe trabalhadora não ter avançado politicamente. Nesses anos todos os sindicatos se domesticaram e os movimentos sociais esperaram muito do governo. Um muito que não veio. Reconheço que o governo petista foi diferente dos demais governos de “casa-grande”, afinal, as tais políticas públicas conseguiram chegar a milhões de pessoas que sempre estiveram fora dos planos governamentais. Não foram as melhores políticas e ainda foram muito tímidas, mas os empobrecidos diminuíram e gente que passava fome, passou a comer. Isso foi real.
Mas, o fato concreto é que os governos petistas serviram muito mais à casa-grande que aos trabalhadores. O agronegócio cresceu, os bancos tiveram lucros astronômicos, os ricos ficaram mais ricos, a dívida não foi auditada e ainda foram aprovadas leis que penalizam os trabalhadores que lutam, como a lei antiterrorismo.
Então porque tanto ódio contra Lula? Se ele serviu muito bem aos interesses da classe dominante? O ódio dos ricos eu entendo. Eles usam os que os servem até quando querem. E quando não querem mais, ou não precisam deles, descartam. Simples. Sempre haverá outro e outro pronto a servir. Então que um latifundiário cuspa no Lula, posso compreender. Lula não vem de sua classe. O que não compreendo é o estranho mecanismo que leva o brasileiro médio, subalterno, da classe trabalhadora, a odiar tanto esse homem, a ponto de realizar passeatas de mãos dadas com a classe que o oprime. Sim, porque entre os que disseminam horrores contra Lula e Dilma não vejo um que o odeie por ele ter governando mais para os ricos do que para os pobres. Não. É a compra cega do discursinho televisivo da “corrupção”. No geral, essas pessoas que cospem ódio sequer sabem bem como foi que os governo petistas se comportaram, para o bem ou para o mal. A impressão que dá é que o ódio ao Lula se dá porque ele tem aparência de pobre, fala como pobre, age como pobre. E aí aparece aquele sentimento do mordomo lá do filme do Tarantino. Entre os serviçais não há quem suporte ver um dos seus comendo à mesa dos patrões. O ódio não é nem pelo fato de um dos seus ter se aliado com os patrões (o que seria interessante e pedagógico), é só pelo fato e ele estar na posição de patrão sem ter cara ou jeito de patrão. A coisa é louca, mano.
As manifestações contra a caravana do Lula no Rio Grande não foram organizadas de maneira espontânea por agricultores e populares, como quer fazer crer a mídia. São manifestações organizadas por partidos políticos como o DEM, o PSDB ou o PMDB, partidos que congregam os latifundiários e a classe dominante do estado. Foram organizados por movimentos do tipo do MBL que são financiados por pessoas e entidades ligadas a esses partidos ou a organismos internacionais de direita. Portanto, são manifestações político-partidárias sim, realizadas dentro do contexto do cenário das eleições. Nenhum desses dirigentes que organizam atos contra o Lula pelo Brasil promove as manifestações porque o Lula é ladrão ou corrupto. Não. É porque eles querem pegar o lugar do Lula para serem os ladrões e os corruptos. Esse é o jogo no mundo capitalista de produção. Esse é o jogo eleitoral.
E, nesse festival de manipulação, aparecem aqueles que como o mordomo da casa-grande, acreditam firmemente que o país estará melhor na mão dos senhores de terra, dos senhores de fábricas e nos senhores de escravos. Esses precisam ser conquistados para sua própria classe. Um trabalho quase inglório, mas que precisa ser feito.
As cenas provocadas no Rio Grande e outras que deverão vir no Brasil todo a continuar a caravana de Lula, são, quer a gente queira ou não, cenas explícitas da luta de classes. Porque os que estão do lado de Lula são conhecidos lutadores sociais, gente que também firmemente crê que, com Lula, a vida dos trabalhadores vai melhorar. São aqueles que acreditam que as transformações podem vir a conta gotas, uma melhoradinha aqui, outra ali, mesmo que as políticas públicas sejam raquíticas e insuficientes. E são tantos os que dão a cara para bater nessa luta por tão pouco. Há que respeitá-los e dialogar com eles, porque, no geral, são nossos companheiros de muitas lutas. Não são eles os inimigos.
Não creio que Lula seja a solução para o Brasil. Minhas expectativas são mais altas. Sonho e luto por transformações estruturais, radicais, que mudem verdadeiramente a face do país. Luto pela emancipação real dos trabalhadores, pelo fim da propriedade privada, pela socialização da riqueza, pelo fim da exploração. Isso não é coisa que se faz com política pública. É coisa que se faz com revolução. Por isso, caminho por outros caminhos. Mas, respeito profundamente cada companheiro ou companheira que está na estrada da defesa do petismo. Espero firmemente que, no embate cotidiano com a classe dominante, cada um e cada uma possa avançar nas expectativas. Não apenas um país “mais” justo. Não apenas um país com “mais” oportunidades para os pobres. Mas um país justo, sem pobres. Alguém pode argumentar que isso se faz passo a passo, por etapas, com calma, devagar. Mas eu acredito na possibilidade do salto, o salto abissal, que rasga a história e muda o mundo.
Nunca estarei do lado da classe dominante. Isso é seguro. Mas, precisamos querer mais do que “um pouquinho mais”. Que as caravanas e os conflitos sirvam para essa reflexão. Que os embates sejam pedagógicos. Sabemos que é o inimigo e vamos enfrentá-lo. E há que ser juntos!