Mirando La Paz, desde El Alto |
Sempre que a
vida pesa e a luta chama, recorro à imagem de dona Vivi, uma mulher boliviana
que conheci em janeiro de 2004, na cidade de La Paz. Acontecia uma greve da
força policial e junto com ela manifestações massivas contra um pacote de
impostos decretados pelo então presidente Sanches de Lozada. O governo chamou o
exército e os conflitos se espalharam com extrema violência. Todas as estradas
estavam fechadas, ninguém entrava ou saia de La Paz. Eu estava numa pensão
perto da rodoviária e lá acompanhei o terror que foram aqueles dias. Na mesma
pensão estava dona Vivi. Viera da cidade de Oruro com o marido, mineiro, para
tratamento médico. Devia andar aí pelos 70 anos, bem magrinha, encurvadinha, os
dedos tortos de tanta lida. A ordem era não sair para a rua, porque como não
havia polícia, os saqueadores tomavam conta da cidade. Durante a noite,
ficávamos acordados, todos juntos, porque grupos criminosos estavam invadindo
casas e hotéis para roubar. A pensão era simples, e havia poucas mulheres. Eu,
dona Vivi, a esposa do dono da pensão e uma senhora que fazia a limpeza. Os demais
hóspedes eram homens.
Acompanhávamos
os conflitos pela televisão e dona Vivi reportava outros conflitos, tão
violentos quanto aquele, que ela já tinha vivido. “A Bolívia é um caldeirão,
minha filha. Não há que ter medo. A morte nunca vem fora de hora. E contra os
tubarões, tem que lutar. Não tem outro jeito”.
No segundo
dia de conflito, a comida já se acabando, ela decidiu sair. Os homens gritavam.
“Não pode sair, o terror está lá fora. Vão matar a senhora”. E ela firme na decisão de conseguir comida. O
marido precisava, estava doente, não podia ficar só na bolacha, que era o que
tínhamos. Tudo estava fechado. As pessoas que andavam nas ruas eram os
saqueadores, carregando móveis, portas, janelas. Um horror. Pois ela pegou sua
bengalinha e saiu. Os homens acuados, sem esboçar reação. Eu olhava estarrecida
pensando como podiam deixa-la sair e não fazer nada. Decidi ir com ela. Quando
me viu sair, estendeu a mão e sorriu. “Tienen miedo. Pobrecitos”.
Andamos uma
quadra inteira e nada de encontrar qualquer comércio aberto. Havia um silêncio
estranho no ar. De repente, um som, baixinho e crescendo. Parecia uma onda
gigante quebrando no mar. Ela se agitou. “Se vienen”, gritou, as mãozinhas agarrando
com força o meu braço. E saiu ligeira em direção ao som. Pela estrada que leva
a cidade de El Alto vinha a multidão. Uma vaga humana incontrolável. Na frente
da coluna vinham mulheres, de braços dados, formando uma corrente. E atrás
delas vinha o povo. Milhares. Uma cena inesquecível. Dona Vivi seguiu em direção
à passeata, me arrastando com ela. Vibrava. “Vamos pegar o cabrón”, dizia,
referindo-se ao presidente. Entramos na onda humana e ali, as mulheres eram
maioria. Caminhavam de olhar fixo, passando por cima de tudo. Ao longo do
caminho foram destruindo tudo que havia, tudo. Uma violência santa. Dona Vivi
caminhava com a mesma fúria inquebrantável das suas companheiras.
A marcha
chegou ao palácio presidencial e as gentes colocaram fogo nele. Também atearam
fogo nos prédios dos ministérios que ficam em volta. De dentro dos edifícios
jogavam mesas, cadeiras, computadores. Era uma praça de guerra. Dona Vivi,
impávida. E só não entrou para jogar as coisas para fora porque não tinha
forças. Mas não arredou pé, nem quando o exército chegou atirando e os corpos
começaram a cair no chão. Foram 14 mortes ali em frente ao palácio. O sangue
escorria pela sarjeta. E ela, punho em riste, gritava: “Fora gringo”, numa
alusão ao sotaque inglês do presidente boliviano.
Feito o
estrago nos prédios públicos e dispersada a multidão ela decidiu voltar para a
pensão, mas ainda queria conseguir comida. Na volta, observávamos o rastro de
destruição que ficara pelo caminho onde passara a marcha. Vários comércios
estavam com as portas quebradas e as pessoas começavam a ajeitar as coisas,
calmamente, como se nada. Dona Vivi conversou com elas, em aymara, sua língua
originária. E, como mágica, apareceram farinha de milho, carne de lhama e
batatas. Ela me passou a sacola e seguiu, firmezita, subindo a rua devastada.
Quando
chegamos à pensão, todos estavam como ratos apavorados. Tinham visto tudo pela
televisão. Já nos acreditavam mortas. Menos o marido de dona Vivi, que esboçou
um leve sorriso quando ela entrou, devagar, no passinho cadenciado. Foi uma
algaravia, todos falando ao mesmo tempo, querendo saber de tudo. E ela seguiu
para a cozinha onde iria fazer uma sopa.
À noite,
depois de saborearmos a sopa de lhama, ficamos na sala, ela e eu, falando sobre
comida. Ela queria que eu lhe passasse a receita da feijoada. “Foste muito corajosa – disse, segurando
minha mão – e é assim que tem que ser. Ninguém faz nada por nós. É a gente que
faz. Eu já explodi mina, já enfrentei tiro, paulada. E também já bati muito.
Ninguém é por nós. Nem deus. É nós e nosso braço. E a gente é forte quanto tá
junto.”
No dia
seguinte, ela se foi, com o marido, decidida a encontrar o médico que viera
ver. Nada a deteria. Ofereci para ir junto. Não quis. “Fica aqui. Hoje vai
estar ruim para um misti (branco)”. Saiu, passo lento, as tranças brancas
escondidas sob o chapéu. O marido agarrado em seu braço, mancando e silente.
Não me abraçou nem beijou. Apenas apertou forte as minhas mãos e disse: “te protege
e protege as companheiras. Somos só nós. Só nós.” Fiquei ali parada, olhando a
velhinha sumir rua acima, as lágrimas caindo sem parar. A impressão que eu
tinha era de que ela era uma força da natureza, alguma deusa originária, vinda
das profundezas das minas de Oruro. Uma fortaleza de bronze. Mas, não. Ela era
apenas uma mulher. Uma mulher como tem que ser. Forte, decidida, sem medo,
imparável diante do terror.
Dona Vivi em
meio ao turbilhão da rebelião boliviana era a expressão de todas essas mulheres
anônimas que rasgam o mundo todos os dias. Olhos fixos no infinito, corpos em
movimento, mãos armadas de porretes e uma vontade férrea de garantir vida boa e
bonita. “Somos só nós”, dissera ela naquela despedida. E isso não é pouco.
Quando estamos juntas, tudo parece possível. Essa nossa energia lunar, que nos
revoluciona por dentro, a cada ciclo de sangue, é a prova concreta de que fomos
feita para a luta renhida, para o vendaval. Não é da nossa natureza a
submissão. Pelo contrário. Estamos sempre ao pé do canhão. Quando os homens
titubeiam, são as mulheres que saltam à frente, como leoas.
Aquela
mulher boliviana, de frágil aparência, era feita de puro mineral, o mesmo que
ainda se esconde nas montanhas de Oruro. Aquela mulher era como eu, como tu que
me lê, capaz de atravessar o inferno em busca do que quer, para proteger o que
ama. Era como as trabalhadoras de Chicago, que morreram queimadas na luta por
direitos. Ou como Juana Azurduy, enfrentando os espanhóis, espada na mão e dois
filhos pendurados no corpo. Ou Anita, que seguiu Garibaldi e expôs sua vida na
luta pela liberdade de dois mundos. Como Dandara, enfrentando o exército para
defender o Quilombo dos Palmares. Ou como essas mulheres anônimas que estão na
frente das batalhas nas cidades curdas, na Síria, no Iraque, em Honduras, na
Guatemala, em Trinidad y Tobago, no Congo, na Zâmbia, nas ruas de São Paulo,
nas favelas do Rio, nos protestos em Florianópolis.
Por isso
gosto de pensar que todos os dias são dias de mulheres, de mulheres que lutam.
Porque todos os dias podemos encontrar uma dona Vivi. No sertão pernambucano,
numa ilha grega, nos confins da Itália, no interior de Chapecó, num órgão
público em Florianópolis. Cada manhã uma de nós acorda dando de cara com o
monstro e precisa enfrentá-lo. E como aquela velhinha aymara, essa mulher
respira fundo, pega suas armas e sai para a rua, disposta a vencer a batalha. O
monstro se expressa em muitas caras. Pode ser o machismo, a violência
doméstica, o trabalho escravo, o abusador, a exploração. Mas, tudo isso forma o
corpo do sistema capitalista de produção. Esse modo de organizar a vida em que
para que um viva outro tenha de morrer. Um sistema no qual a mulher é vista
como propriedade e mercadoria. Destruir esse modo de vida é fundamental para
que encontremos o caminho da vida plena.
Quando
naquela manhã dona Vivi se despediu dizendo: “somos só nós”, ela não estava
falando da união das mulheres em geral. Não. Ela estava me dizendo que temos de
ter tomar uma posição de classe. Naquele dia ela poderia ter escolhido ficar em
casa, assustada, com medo, ou apoiando a postura de um governo corrupto e
opressão. Mas não, ela saiu, foi para a rua, se juntou à marcha dos
trabalhadores. E com os trabalhadores ela derrubou cercas, ocupou palácios,
incendiou o poder e mudou a história. Porque naquele dia o presidente da
Bolívia teve de fugir do país.
Assim, todos
os dias é tempo de sermos valentes para a guerra contra o capital. Nós, mulheres,
irmãs, rasgando a história e construindo o novo mundo. Isso é possível em todo
o lugar, nas grandes lutas e também nas pequenas batalhas cotidianas.
Somos só nós,
e vamos juntas!