Alzheimer/Velhice

quinta-feira, 8 de março de 2018

Dia de mulheres

Mirando La Paz, desde El Alto


Sempre que a vida pesa e a luta chama, recorro à imagem de dona Vivi, uma mulher boliviana que conheci em janeiro de 2004, na cidade de La Paz. Acontecia uma greve da força policial e junto com ela manifestações massivas contra um pacote de impostos decretados pelo então presidente Sanches de Lozada. O governo chamou o exército e os conflitos se espalharam com extrema violência. Todas as estradas estavam fechadas, ninguém entrava ou saia de La Paz. Eu estava numa pensão perto da rodoviária e lá acompanhei o terror que foram aqueles dias. Na mesma pensão estava dona Vivi. Viera da cidade de Oruro com o marido, mineiro, para tratamento médico. Devia andar aí pelos 70 anos, bem magrinha, encurvadinha, os dedos tortos de tanta lida. A ordem era não sair para a rua, porque como não havia polícia, os saqueadores tomavam conta da cidade. Durante a noite, ficávamos acordados, todos juntos, porque grupos criminosos estavam invadindo casas e hotéis para roubar. A pensão era simples, e havia poucas mulheres. Eu, dona Vivi, a esposa do dono da pensão e uma senhora que fazia a limpeza. Os demais hóspedes eram homens.

Acompanhávamos os conflitos pela televisão e dona Vivi reportava outros conflitos, tão violentos quanto aquele, que ela já tinha vivido. “A Bolívia é um caldeirão, minha filha. Não há que ter medo. A morte nunca vem fora de hora. E contra os tubarões, tem que lutar. Não tem outro jeito”.

No segundo dia de conflito, a comida já se acabando, ela decidiu sair. Os homens gritavam. “Não pode sair, o terror está lá fora. Vão matar a senhora”.  E ela firme na decisão de conseguir comida. O marido precisava, estava doente, não podia ficar só na bolacha, que era o que tínhamos. Tudo estava fechado. As pessoas que andavam nas ruas eram os saqueadores, carregando móveis, portas, janelas. Um horror. Pois ela pegou sua bengalinha e saiu. Os homens acuados, sem esboçar reação. Eu olhava estarrecida pensando como podiam deixa-la sair e não fazer nada. Decidi ir com ela. Quando me viu sair, estendeu a mão e sorriu. “Tienen miedo. Pobrecitos”.

Andamos uma quadra inteira e nada de encontrar qualquer comércio aberto. Havia um silêncio estranho no ar. De repente, um som, baixinho e crescendo. Parecia uma onda gigante quebrando no mar. Ela se agitou. “Se vienen”, gritou, as mãozinhas agarrando com força o meu braço. E saiu ligeira em direção ao som. Pela estrada que leva a cidade de El Alto vinha a multidão. Uma vaga humana incontrolável. Na frente da coluna vinham mulheres, de braços dados, formando uma corrente. E atrás delas vinha o povo. Milhares. Uma cena inesquecível. Dona Vivi seguiu em direção à passeata, me arrastando com ela. Vibrava. “Vamos pegar o cabrón”, dizia, referindo-se ao presidente. Entramos na onda humana e ali, as mulheres eram maioria. Caminhavam de olhar fixo, passando por cima de tudo. Ao longo do caminho foram destruindo tudo que havia, tudo. Uma violência santa. Dona Vivi caminhava com a mesma fúria inquebrantável das suas companheiras.

A marcha chegou ao palácio presidencial e as gentes colocaram fogo nele. Também atearam fogo nos prédios dos ministérios que ficam em volta. De dentro dos edifícios jogavam mesas, cadeiras, computadores. Era uma praça de guerra. Dona Vivi, impávida. E só não entrou para jogar as coisas para fora porque não tinha forças. Mas não arredou pé, nem quando o exército chegou atirando e os corpos começaram a cair no chão. Foram 14 mortes ali em frente ao palácio. O sangue escorria pela sarjeta. E ela, punho em riste, gritava: “Fora gringo”, numa alusão ao sotaque inglês do presidente boliviano.

Feito o estrago nos prédios públicos e dispersada a multidão ela decidiu voltar para a pensão, mas ainda queria conseguir comida. Na volta, observávamos o rastro de destruição que ficara pelo caminho onde passara a marcha. Vários comércios estavam com as portas quebradas e as pessoas começavam a ajeitar as coisas, calmamente, como se nada. Dona Vivi conversou com elas, em aymara, sua língua originária. E, como mágica, apareceram farinha de milho, carne de lhama e batatas. Ela me passou a sacola e seguiu, firmezita, subindo a rua devastada.

Quando chegamos à pensão, todos estavam como ratos apavorados. Tinham visto tudo pela televisão. Já nos acreditavam mortas. Menos o marido de dona Vivi, que esboçou um leve sorriso quando ela entrou, devagar, no passinho cadenciado. Foi uma algaravia, todos falando ao mesmo tempo, querendo saber de tudo. E ela seguiu para a cozinha onde iria fazer uma sopa.

À noite, depois de saborearmos a sopa de lhama, ficamos na sala, ela e eu, falando sobre comida. Ela queria que eu lhe passasse a receita da feijoada.  “Foste muito corajosa – disse, segurando minha mão – e é assim que tem que ser. Ninguém faz nada por nós. É a gente que faz. Eu já explodi mina, já enfrentei tiro, paulada. E também já bati muito. Ninguém é por nós. Nem deus. É nós e nosso braço. E a gente é forte quanto tá junto.”

No dia seguinte, ela se foi, com o marido, decidida a encontrar o médico que viera ver. Nada a deteria. Ofereci para ir junto. Não quis. “Fica aqui. Hoje vai estar ruim para um misti (branco)”. Saiu, passo lento, as tranças brancas escondidas sob o chapéu. O marido agarrado em seu braço, mancando e silente. Não me abraçou nem beijou. Apenas apertou forte as minhas mãos e disse: “te protege e protege as companheiras. Somos só nós. Só nós.” Fiquei ali parada, olhando a velhinha sumir rua acima, as lágrimas caindo sem parar. A impressão que eu tinha era de que ela era uma força da natureza, alguma deusa originária, vinda das profundezas das minas de Oruro. Uma fortaleza de bronze. Mas, não. Ela era apenas uma mulher. Uma mulher como tem que ser. Forte, decidida, sem medo, imparável diante do terror.  

Dona Vivi em meio ao turbilhão da rebelião boliviana era a expressão de todas essas mulheres anônimas que rasgam o mundo todos os dias. Olhos fixos no infinito, corpos em movimento, mãos armadas de porretes e uma vontade férrea de garantir vida boa e bonita. “Somos só nós”, dissera ela naquela despedida. E isso não é pouco. Quando estamos juntas, tudo parece possível. Essa nossa energia lunar, que nos revoluciona por dentro, a cada ciclo de sangue, é a prova concreta de que fomos feita para a luta renhida, para o vendaval. Não é da nossa natureza a submissão. Pelo contrário. Estamos sempre ao pé do canhão. Quando os homens titubeiam, são as mulheres que saltam à frente, como leoas. 

Aquela mulher boliviana, de frágil aparência, era feita de puro mineral, o mesmo que ainda se esconde nas montanhas de Oruro. Aquela mulher era como eu, como tu que me lê, capaz de atravessar o inferno em busca do que quer, para proteger o que ama. Era como as trabalhadoras de Chicago, que morreram queimadas na luta por direitos. Ou como Juana Azurduy, enfrentando os espanhóis, espada na mão e dois filhos pendurados no corpo. Ou Anita, que seguiu Garibaldi e expôs sua vida na luta pela liberdade de dois mundos. Como Dandara, enfrentando o exército para defender o Quilombo dos Palmares. Ou como essas mulheres anônimas que estão na frente das batalhas nas cidades curdas, na Síria, no Iraque, em Honduras, na Guatemala, em Trinidad y Tobago, no Congo, na Zâmbia, nas ruas de São Paulo, nas favelas do Rio, nos protestos em Florianópolis.

Por isso gosto de pensar que todos os dias são dias de mulheres, de mulheres que lutam. Porque todos os dias podemos encontrar uma dona Vivi. No sertão pernambucano, numa ilha grega, nos confins da Itália, no interior de Chapecó, num órgão público em Florianópolis. Cada manhã uma de nós acorda dando de cara com o monstro e precisa enfrentá-lo. E como aquela velhinha aymara, essa mulher respira fundo, pega suas armas e sai para a rua, disposta a vencer a batalha. O monstro se expressa em muitas caras. Pode ser o machismo, a violência doméstica, o trabalho escravo, o abusador, a exploração. Mas, tudo isso forma o corpo do sistema capitalista de produção. Esse modo de organizar a vida em que para que um viva outro tenha de morrer. Um sistema no qual a mulher é vista como propriedade e mercadoria. Destruir esse modo de vida é fundamental para que encontremos o caminho da vida plena.

Quando naquela manhã dona Vivi se despediu dizendo: “somos só nós”, ela não estava falando da união das mulheres em geral. Não. Ela estava me dizendo que temos de ter tomar uma posição de classe. Naquele dia ela poderia ter escolhido ficar em casa, assustada, com medo, ou apoiando a postura de um governo corrupto e opressão. Mas não, ela saiu, foi para a rua, se juntou à marcha dos trabalhadores. E com os trabalhadores ela derrubou cercas, ocupou palácios, incendiou o poder e mudou a história. Porque naquele dia o presidente da Bolívia teve de fugir do país.

Assim, todos os dias é tempo de sermos valentes para a guerra contra o capital. Nós, mulheres, irmãs, rasgando a história e construindo o novo mundo. Isso é possível em todo o lugar, nas grandes lutas e também nas pequenas batalhas cotidianas.  

Somos só nós,  e vamos juntas!


terça-feira, 6 de março de 2018

Oscar Rivera




Existem pessoas que não claudicam, que se postam do lado certo da história, com seu povo e, passe o que passe, não desistem. Apostam na liberdade e na soberania. Assim é Oscar López Rivera. Lutando pela liberdade de Porto Rico ele foi preso pelos estadunidenses invasores em 1981.

Sua pena por lutar pela liberdade foi de 55 anos, acrescida de mais 15 por tentar escapar da prisão. Depois de cumprir 36 anos, sendo o prisioneiro político que mais tempo ficou encarcerado,foi indultado por Barak Obama e saiu livre no ano passado. Voltou para Porto Rico onde continua sua batalha pela libertação.

Nunca esmoreceu e mantém seu sorriso cheio de ternura. Ontem, durante as celebrações pela semeadura do querido Hugo Chávez, recebeu de Nicolás Madura a réplica da espada de Bolívar, a qual recebeu com a humildade que lhe é peculiar. Ao ver seu rostinho, e seu olhar de profundo amor pela vida e pela liberdade, a gente sente que vale a pena tudo o que se luta nessa vida. Obrigada Oscar López Rivera!


domingo, 4 de março de 2018

Com amor, Vincent



A primeira vez que vi Vincent foi através de uma de suas pinturas, “Os comedores de batatas”, que compunham uma coletânea dos melhores pintores do mundo, numa dessas coleções que meu pai comprava dos vendedores de livros que batiam na nossa porta. Eu devia ter uns 10 anos. Gostava do quadro porque me lembrava da casa da vó Tila e do vô Dionísio. Lá não havia luz e a gente também comia sob a luz do lampião. Eles eram agricultores e a comida sempre era simples, no geral um único prato. E, por fim, porque eu sempre fui apaixonada por batatas. Assim, aquela cena de luz bruxuleante impregnava minhas retinas. Os trabalhadores e sua imanência.

Só bem mais tarde fui descobrir e também amar o Vincent mais colorido, amarelo e vibrante. Ainda assim, “os comedores de batata” seguia sendo meu quadro favorito. Para além da pintura, a história dramática do pintor, tão triste, sempre me comoveu e uma das primeiras coisas que fiz quando fui a Amsterdã foi buscá-lo, no museu que abriga suas obras. Por algum motivo não sabido, eu sempre o amei.

Ontem vi o filme de Dorota Kobiela e Hugh Welchman “Com amor, Vincent”, cujo projeto reuniu 100 diferentes pintores e somou 65 mil frames. Chorei o tempo todo da projeção e segui chorando, aos soluços, até umas três horas depois. O filme é uma poesia, uma belezura, uma obra de arte. Um grito de amor a esse tumultuado artista que, em apenas oito anos de trabalho, reinventou a pintura.

Ao ver que a história girava em torno do profundo amor que o carteiro Joseph Roulin tinha por Vincent, verteu o aguaceiro. Pois é justamente a família de Roulin que Vincent imortalizou no quadro “os comedores de batatas”. E a saga de seu filho, tentando desvelar a morte do pintor, é estonteante, apaixonante, abissal.

Enquanto o jovem busca a verdade, as telas de Vincent se movimentam sob nossos olhos e aí, essa mistura da pintura, da vida e dos sentimentos de Van Gogh vão amalgamando um sentimento que é misto de dor, alegria, prazer e desespero. 

Vincent começou a pintar aos 28 anos e morreu aos 37. Cedo demais. Ou não. A explosão de sua obra talvez tivesse sido grandiosa demais para o corpo. Em vida vendeu um único quadro e hoje é um dos mais importantes pintores de todos os tempos. O filme explora essa intensidade, essa necessidade oceânica de expressar a vida. O tempo passa e a gente não sente, misturada entre risos e lágrimas, entre a doçura e mão dura da dor.

Quando acaba, não acaba, e a gente fica atordoada por horas. Pela beleza da obra, por Vincent, pela beleza da vida. Uma vontade louca de abraçar aquele ruivo grandote e dizer: Te amo. Obrigada.

Recomendo o filme. É extraordinário...