J.A.F tem 32 anos e trabalha como diarista em casas alheias.
Ela tem um único sonho, que persegue desde quando era bem pequena: ter a sua
própria casa. “Quando era menina eu comecei um cofrinho de moedas. Dizia que
era dali que sairia a casa que eu iria comprar para minha mãe e para mim. Hoje
ainda tenho o cofrinho, e com ajuda de deus eu vou conseguir”. A mãe já morreu.
Tuberculose. E J. embarcou numa profunda depressão. Foi nessa fase da vida que
ela encontrou a igreja. “Eu tava passando e o pastor estava na porta. Ele me
chamou e disse que ali eu encontraria a paz. Não sei como ele percebeu que eu
estava muito mal”. Pois ela entrou e veio a paz. Depois de abraçar a fé ela
melhorou da depressão, conseguiu voltar a trabalhar e já tem até um carro.
“Eles lá disseram isso bem claro. Se a gente trabalhar bastante, a gente
consegue chegar lá”.
Esse “chegar lá” é a ponta de lança da teologia da
prosperidade, essa que carregou para o sagrado o que há de mais profano no
mundo: o fetiche da mercadoria. Muitas igrejas realizam cultos específicos com
o intuito de chamar a riqueza para os fiéis. Não é sem razão que crescem sem
parar, arrebanhando cada vez mais gente. Num mundo marcado pela exploração,
pelo individualismo e pela solidão, essas igrejas conseguem dar uma
centralidade para almas em escombros, típicas do espírito do tempo.
Mas, o crescimento dos cultos pentecostais, geridos pela
ideia de prosperidade, nada tem a ver com a religião. Eles estão muito mais
ligados ao modo de produção capitalista, mantendo milhares de pessoas justamente
na batalha pela prosperidade, girando a roda do capital. O mais importante é observar que, no mais das
vezes, as pessoas realmente melhoram de vida, porque estão mais centradas, mais
determinadas e incluídas em um grupo que as impele para frente. Nos cultos, quem é
exorcizado é o diabo, o demônio, satanás, belzebu, como se fosse essa entidade
mágica a responsável pelas dores e pelos fracassos. Então, o verdadeiro culpado
pelo drama dos trabalhadores – o capitalismo – segue intocado, esquecido e
apagado. Se é o demônio que se apossa da pessoa e a impede de prosperar, basta
que a comunidade, em comunhão, garanta a expulsão do malvado, para que a vida
comece a melhorar.
É bom que se diga que todas as pessoas que buscam na
religião um bálsamo para as dores, lá estão porque realmente creem. Sentem-se
acolhidas e não acreditam que muitos pastores ou pastoras, estejam ali para
roubar seu dinheiro. Acham que o dízimo, que oferecem de bom grado, servirá
para abrir as portas do céu, ainda que seja apenas o céu do líder da igreja. E
como, de alguma maneira, a vida melhora mesmo, não se importam de aplicar seu
tempo na esperança de conquistar coisas boas.
Marx, ao analisar o modo capitalista de produção fala desse
tempo a mais que o trabalhador deixa com o patrão. Na jornada de trabalho, no
geral, muito mais da metade é lucro do patrão. A famosa mais-valia, ou
mais-valor. Ludovico Silva, um filósofo venezuelano, vai dizer que assim como o
patrão surrupia a mais-valia do trabalhador no local de trabalho, o sistema
como um todo rouba uma mais-valia ideológica quando o trabalhador está em casa,
vendo televisão. Pensando estar se distraindo ou usando seu tempo livre para
curtir um bom programa de TV, ele está na verdade sendo consumido pela máquina
de vender mercadorias. Ainda que fora do local de trabalho, segue prisioneiro
do capital. Pois essas igrejas pentecostais que atuam com a teologia da
prosperidade fazem algo bem parecido. A pessoa está lá, pensando estar em
sintonia com deus, com o sagrado, mas ao final, não consegue se desvencilhar do
desejo de ter coisas, de amealhar mercadorias. Isso significa que ainda está
presa no sistema, gerando uma espécie de mais-valia espiritual. Sua própria
relação com deus acaba mediada pelo tanto de coisas que pode conseguir.
Não é também sem razão que são os líderes dessas igrejas os
que, totalmente tomados pelos interesses seculares, adentram no jogo político
garantindo postos de poder nas câmaras de vereadores, assembleias, câmara dos
deputados, senado e estado. Geralmente aliados ao grande capital. Raros – se é
que há - estão atuando na defesa dos trabalhadores.
Outra maneira de atuar na defesa do capital é a aposta no
fanatismo, que leva o fiel a ficar sem discernimento e sem pensamento crítico.
Aceitando a palavra do líder como a única verdade, a pessoa torna-se capaz dos
atos mais violentos, agindo sempre em nome da salvação da humanidade. Algo
assim como o que estamos vivendo hoje no Brasil, com a série de ataques a
pessoas ligadas à religião de matriz africana. Não por acaso a violência centra foco nos deuses do povo negro. Bramindo um “deus” específico,
que é o único salvador, pessoas atacam outras pessoas, matam e discriminam.
Foram os iluministas franceses, em particular, Voltaire
(1694 — 1778), que polemizaram sobre o fanatismo, ligando essa prática a
intolerância e à violência, justamente porque a Europa vivera até pouco tempo
uma série de guerras envolvendo católicos e religiosos. Mas, naqueles dias,
como hoje, o que realmente estava em questão não era a fé ou deus: era o poder.
Com o crescimento do protestantismo, o status do papa, que era quem decidia a
vida de todo mundo – inclusive dos reis – estava ameaçado. E era a igreja
católica a que detinha também muita terra e riqueza. Então, enquanto nas
batalhas morriam as gentes comuns, a aristocracia tramava para um ou para outro
lado, sempre de olho na riqueza que poderia amealhar.
É por isso que se faz necessário uma boa análise sobre o
“fanatismo” que vivemos no Brasil. Observando bem vamos ver que não são apenas
ataques esparsos a outras religiões, o que poderia caracterizar uma contenda
verdadeiramente religiosa. Não. Os tentáculos dessas lideranças pentecostais –
justamente por estarem em cargos de poder
- se estendem para a vida cotidiana. O projeto da Escola sem partido,
buscando atuar na educação. A tentativa de barrar o debate sobre gênero e o
ataque aos homossexuais, interferindo na vida pessoal, a lei que permite ensino
de religião confessional, tentando arrebanhar a criança para a fé, a proposta
de obrigatoriedade das músicas religiosas nas rádios e TVs, atuando como
mais-valia ideológica e disputando o mercado musical. Tudo isso configura a
intervenção e o fortalecimento desse fanatismo, em “nome de Jesus”, em todos os
segmentos da sociedade. O objetivo final pode ser justamente submeter, pela
violência, toda uma população, sob o pretexto da salvação das almas.
Mas o que move o motor do fanatismo é algo bem mais prosaico
do que deus. Trata-se do vil metal, dinheiro, borofa, bufunfa. A aposta é
manter o rebanho ocupado na “guerra santa” pela moralidade e os bons costumes,
enquanto o capital avança em mais uma onda de acumulação e expropriação. Assim,
no Congresso, onde manda a bancada da bíblia, aliada a do boi e da bala, os
deputados vão realizando as reformas exigidas pelo capital que manterão ainda
mais cativos os trabalhadores. “Trabalhe, não pense”, diz o presidente, que
fala como um gentil homem do século 16. E não poderia haver mote melhor para o
Brasil desses dias. Enquanto uma legião de pessoas que trabalha e não pensa se
digladia com exposições artísticas, homens nus, mães de santo e grita por
intervenção militar, o capital segue impávido pelas estradas, quase sem
obstáculos.
Sendo assim, talvez fosse hora de olhar com mais cuidado
para esse fenômeno, vendo-o como se expressa na luta de classes. Não basta
ridicularizar nas redes sociais. As pessoas estão se fanatizando, isso é claro
como o sol. São poucos agora, mas podem crescer. E se levarmos em conta de que
o que está por trás do fenômeno é o processo de acumulação capitalista, o tema
fica ainda mais urgente. A imposição do poder sob a força das armas sempre é
uma alternativa possível, mas não podemos esquecer que, para isso, é preciso
que seja montada toda uma atmosfera capaz de respaldar as ações violentas. Esse
é o cenário que estamos vendo crescer sob nossos olhos. É tempo de ver e
começar a agir em consequência.