O sistema capitalista de produção, diz Mészáros, é uma totalidade
incontrolável. Sua função é buscar lucro a todo custo e, por isso, nem mesmo os
capitalistas conseguem colocar freio a essa sede desenfreada. Pelo contrário,
eles são obrigados a se submeter aos imperativos do sistema que é totalitário por
natureza. Assim que, como no clássico filme de terror do grande Bóris Karloff,
“A bolha assassina”, ele funciona exatamente como a gosma verde faminta e sem
controle, se expandindo sempre mais e engolindo tudo no caminho por onde passa,
insaciável. Sua fonte de riqueza é o trabalho dos trabalhadores. Daí é extraída
a mais-valia, que é o valor a mais, criado pelo trabalhador, e não pago pelo
patrão. Marx (2013) já desvendou esse mistério e mostra no clássico “O
Capital”, com dados concretos, como não existe outra forma de o capitalista
garantir sua riqueza se não for explorando o trabalhador.
No geral a exploração se dá assim: a pessoa, dita livre, é contratada,
vendendo sua força de trabalho, e recebe um salário por oito horas. Esse
salário serve apenas para garantir que o trabalhador não morra. Garante
minimamente a comida, a roupa, algum serviço de saúde e ponto. Mas, a riqueza
que a pessoa produz nessas oito horas de trabalho é bem maior do que o salário
que ela recebe. O que sobra dessa subtração é o lucro do patrão. A mais-valia.
Com o passar do tempo, o sistema capitalista foi encontrando formas de
extrair ainda mais valor da pessoa. A invenção das máquinas ajudou e tem
ajudado bastante os ricos a enriquecerem mais. Pois, com a máquina, a pessoa trabalha
as mesmas oito horas, mas produz infinitamente mais. O salário segue achatado e
aumenta o mais valor para os patrões. Os lucros são estratosféricos, enquanto
os trabalhadores são muito mais explorados porque ficam completamente
subordinados à máquina, tendo de acompanhar o seu movimento, prejudicando sua
saúde e vendo ser sugada a suas condições de vida. “A autovalorização do
capital com a máquina é diretamente proporcional ao número de trabalhadores que
ele aniquila” (MARX, 2013, p. 503).
Pois nos tempos atuais, não satisfeitos com a possibilidade de extrair
mais e mais valor da pessoa que trabalha, o sistema busca esticar e esticar a
vida dessa “peça” inestimável, que é a que produz valor e garante seu lucro. Uma
das estratégias é investir na medicina e na indústria farmacêutica, garantindo
assim que a expectativa de vida do ser humano aumente, logo, as pessoas tendem
a viver mais, mesmo os trabalhadores. Ainda que os avanços mais radicais sejam
de uso exclusivo de quem tem muito dinheiro, os trabalhadores acabam se
beneficiando perifericamente e isso faz com que possam garantir saúde por mais
tempo. Basta lembrar que, segundo dados do IBGE, no início do século XX a
expectativa de vida de um trabalhador era de 33 anos enquanto que hoje ela
chega aos 64 anos. Então, com base nesses números, que praticamente dobram o
tempo em que um trabalhador pode permanecer dando lucro, qual o passo mais
lógico para o sistema capitalista? Não permitir que essa peça imprescindível de
produzir riqueza fique gozando a vida em uma aposentadoria que pode se estender
por 20 e até 30 anos, com custos considerados altíssimos pelo Estado.
O roubo do corpo
É exclusivamente por isso que não só o Brasil, mas vários outros países
da América Latina estão promovendo mudanças no sistema de Previdência e
seguridade social. Uma reforma já foi anunciada pelo governo de Michel Temer. E
ela, confirmam os estudiosos, não tem nada que ver com rombo ou déficit.
Conforme explica a professora da UFRJ Denise Gentil (2016), enquanto os economistas
do governo provisório apontam em 2015 um déficit de R$ 85 bilhões, no mesmo ano
as planilhas da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip)
anunciam um superávit de R$ 24 bilhões. E, na comparação com os anos anteriores,
percebe-se que, em função do aumento do desemprego que diminui a arrecadação,
esse saldo positivo foi bem menor do que os R$ 53,9 bilhões que sobraram em
2014 e os R$ 76,2 bilhões de 2013, anos em que, do lado do Planalto, já se
falava em déficit.
“O governo faz um cálculo muito
simplório. De um lado, ele pega uma das receitas, que é a contribuição ao INSS,
dos trabalhadores, empregadores, autônomos, trabalhadores domésticos, que é o
que a gente chama de contribuição previdenciária. Do outro, pega o total do
gasto com os benefícios: pensão, aposentadoria, todos os auxílios — inclusive
auxílio doença, auxílio-maternidade, auxílio-acidente — e diminui. Então, isso
dá um déficit” (GENTIL, 2016, s.p).
A professora informa ainda, baseada num longo estudo, resultado de seu
doutorado, que levando em conta apenas as contribuições previdenciárias, a
receita bruta da previdência em 2014 chegou a R$ 349 bilhões, e pagou um total
de R$ 394 bilhões de benefícios. Assim, fazendo essa conta chega-se ao déficit
apontado por Denise: R$ 45 bilhões — bem menor do que o anunciado pelo governo.
Mas, ao considerar a receita total, incluindo os mais de R$ 310 bilhões
arrecadados da CSLL, Cofins e PIS-Pasep, o valor arrecadado chega a R$ 686
bilhões. Logo, a gritaria de que há déficit não espelha a realidade. É uma mera
manipulação dos números.
Observando os números sob o aspecto da totalidade vê-se que não há
problemas com as contas. A questão única que orienta essa decisão é a ganância
dos capitalistas e o desejo de expandir cada vez mais seus lucros e seus
espaços de exploração. Por isso que as pretendidas mudanças na Previdência e na
Seguridade Social não aparecem só no Brasil, elas estão por todo o mundo,
inclusive nos países centrais que, até bem pouco tempo, gozavam do famoso “bem
estar social”. Não gozam mais. Basta ver as lutas que acontecem na Europa desde
há anos, por conta da sistemática perda de direitos por parte dos
trabalhadores.
Como aponta Marx, é da natureza do capitalismo se expandir. Ele precisa
fazer o dinheiro gerar dinheiro, sem parar. Foi assim que a produção saiu dos
países centrais e ocupou os países dependentes e subdesenvolvidos. Os
capitalistas ocuparam a América Latina, o continente africano, a Ásia, sempre
em busca de mão de obra barata, as quais pudessem sugar até a última gota de
sangue. Por isso que nesses lugares periféricos o que existe é a
superexploração dos trabalhadores, ou seja, jornada maior que oito horas, e
maior produção no espaço de tempo da jornada (MARINI, 1999). Com isso o lucro dos
capitalistas aumenta de maneira abissal.
Agora, todos os espaços da terra já foram ocupados com essa sanha
destruidora da produção de mercadorias que as pessoas sequer precisam. Também
já criaram as técnicas de obsolescência programada para que essas mercadorias
tenham que ser trocadas a cada tanto.
Só que os capitalistas sabem que, apesar de toda automação, é só o
trabalhador que cria o mais valor. Esse lucro, que garante a riqueza do 1% das
pessoas que detêm os meios de produção, só pode existir se for roubado de seres
humanos que trabalham, os 99% restantes que apenas possuem sua força de
trabalho para vender e a vendem por preços mínimos. Não há outra forma de
produzir riqueza. Por isso a necessidade agora de avançar ainda mais sobre o
corpo.
Se antes a pessoa trabalhava até os 50 anos, agora precisa ir mais
adiante. A vida dura mais, então há que explorar por mais tempo a pessoa. O que
fazem então os donos do capital? Tiram os direitos. Nada de aposentadoria, pois
faria com que uma grande massa de gente ficasse sem gerar valor. E ainda mais
sendo empobrecidos. “Ficariam por aí incomodando”, é o que devem imaginar.
Então, acabam com a previdência, inviabilizando a aposentadoria. Pelas novas
regras proposta pela reforma de Michel Temer, que deverão ser aprovadas, a
pessoa terá de contribuir por 49 anos para ter direito a uma aposentadoria.
Os prognósticos são aterradores, visto que, no Brasil, a maioria das
pessoas começa a trabalhar muito cedo, e, no geral, sem a cobertura de uma
carteira assinada. Ainda assim, o governo consegue passar a ideia de que os
trabalhadores estão mesmo atrapalhando o desenvolvimento do país por estarem
ficando velhos. E como consegue isso? Simples. Cria uma campanha sistemática
através dos velhos parceiros do capital – os meios de comunicação de massa.
Envolve jornalistas, formadores de opinião, apresentadores de programas de
entretenimento, ídolos nacionais, todo mundo falando a mesma coisa. “A
previdência tá quebrada, a previdência tá quebrada”. “A culpa é dos velhos, a
culpa é dos velhos”. Cria-se um consenso e, num átimo, até os velhos começam a
achar que são mesmo um atrapalho e que o melhor mesmo é, pelo menos seguir
trabalhando e contribuindo para o desenvolvimento do país. Até que venha a
morte.
Ora, isso é uma mentira.
No mundo, 99% da população é formada por esses criadores de valor, os
trabalhadores, que conformam a maioria. A riqueza que existe, toda ela, é
produzida por essa gente. Os que usufruem dela são os ladrões. Roubam mais
valor.
A bomba que hoje é chamada de “reforma da previdência” não está a
reformar nada. Está, ao contrário, destruindo a vida das pessoas, com mais
voracidade do que já vem fazendo a classe patronal desde que o sistema
capitalista existe. Contribuir por 49 anos para garantir um salário igual ao
que a pessoa tenha quando se aposentar, isso é uma afronta à vida. Jogar para
65 anos a idade mínima para parar de trabalhar é um crime. Mas, em verdade,
esse não é problema mesmo. É só a aparência da coisa. A essência mesmo é o modo
de produção, o capitalismo. E é esse sistema que precisa ser destruído.
A boa notícia é que isso é possível. Se são os trabalhadores os que geram
a riqueza e se eles são 99% da população, então eles são os que estão com a
faca e o queijo na mão. Nesse sentido, considerando que o sistema se sustenta
no tripé capital, trabalho e estado, há que recuperar o trabalho, destruir os
capitalista e assaltar o estado. E, tomando-o, mudar o modo como a riqueza é
gerada e distribuída. Conforme diz Mézáros (2002), esse tripé é uma totalidade
sistêmica e não basta mudar apenas em um dos pontos. É necessária uma mudança
estrutural geral.
O sindicato domesticado
Desde o princípio do capitalismo as lutas dos trabalhadores se intensificaram
a ponto de serem criadas instituições capazes de juntar as pessoas de um mesmo
ramo do trabalho, para reivindicar direitos e melhores remunerações. No final
do século 19 e início do século 20 foram os anarquistas que, com suas ações
diretas, deram um formato guerreiro aos sindicatos. Mas, com o tempo, conforme
analisa Mézáros, essas entidades saíram da atitude agressiva e de combate, para
um papel mais defensivo. Começou a política de negociação e interlocução com o
capital que gerou, em alguns lugares e momentos específicos, certos ganhos
pontuais. O nascimento dos partidos trabalhistas também fez piorar a situação,
pois mais uma vez se aprofundaram as atitudes defensivas. Os pequenos ganhos,
as migalhas, fizeram com que os trabalhadores fossem se afastando do socialismo
e a da proposta de uma transformação radical do modo de produção.
Hoje, o que se vê são os sindicatos afundados nas pequenas lutas
corporativas, com pontos muito específicos, e os partidos de trabalhadores
acreditando que, no parlamento, poderão avançar nas conquistas. Segundo
Mézáros, esses são equívocos desastrosos para a luta geral da classe
trabalhadora. Os sindicatos atuais não têm respostas para a globalização do
capital e os partidos estão encurralados em parlamentos ultraconservadores. E
mesmo aqueles que chegaram a tomar alguns governos na década de 90 do século
passado e no início do século 21 não foram capazes de mudar a regulação
sociometabólica do processo de reprodução material. O capital assumiu o
controle fora da política, seguiu dominando, ampliando ainda mais seus espaços.
O filósofo húngaro critica o fato de os socialistas terem se voltado para
lutas pontuais nos movimentos sociais, esquecendo o trabalho e todo o potencial
mobilizador que ele tem, justamente por ser o que produz de fato a riqueza.
Para ele, os movimentos de questão única (sem a profundidade da luta de
classes) não apresentam soluções nem alternativas coerentes. E, aos poucos, ou
são integrados ou derrotados.
É fato que não há respostas prontas sobre como enfrentar o capital nos
seus tempos de monopólio globalizado, mas Mézáros dá pistas. Ele acredita que é
preciso combinar o braço industrial (sindicatos) com o político (partido de
trabalhadores). Mas, para isso, os sindicatos precisam sair da bolha do
particularismo, precisam tomar decisões no campo da política e os partidos de
esquerda precisam ser ativos nos conflitos industriais como antagonistas do
capital, dentro e fora do parlamento. A luta isolada de cada um desses
segmentos representa a derrota dos trabalhadores. Há que atuar em conjunto.
No caso específico da contrarreforma da Previdência que está sendo
vivenciada no Brasil e em vários outros países, essa ideia precisaria ser
colocada em prática. Não basta aos sindicatos discutir só o direito em si. É
preciso mostrar aos trabalhadores que esse projeto é parte intrínseca do
sistema metabólico do capital. Nesse sentido há que atuar politicamente
mostrando as rachaduras do sistema como um todo e não apenas os números e
possibilidades da previdência pública.
O trabalhador precisa saber que o capital não vive sem o trabalho, mas o
trabalho vive sem o capital. Isso tem de ser aproveitado e deve ser o ponto de
partida. Assim, retomar a discussão do trabalho e da sua potencialidade
revolucionária urge, mostrando que o socialismo não é uma ideia absurda de um
pequeno grupo. O socialismo, diz Mézáros, precisa ser universalmente viável,
inclusive nos Estados Unidos, que é o motor do capital.
O projeto socialista precisa discutir as causas da pobreza, das
migrações, do desemprego, da fome, não como coisas isoladas num determinado
momento, mas como causas do modo de controle sociometabólico estabelecido. A
mudança tem de ser global. Mudar o sistema como um todo e não apenas
estabelecer alguns ajustes em uma das três pontas do tripé.
É claro que enquanto não acontece a derrocada do sistema é preciso lutar
pontualmente contra os sintomas. Por isso há que buscar barrar essa mudança na
Previdência. Mas, como uma luta tática.
Não existe rombo. A pesquisadora Denise Gentil, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, escreveu uma tese desmontando essa farsa. O que acontece é
que o governo de plantão faz uma opção política de tirar recursos da rubrica da
previdência para pagar outras contas, geralmente os juros bancários. Os bancos,
sempre os bancos. Lembrem que naquela turma do 1% uma boa parte é de
banqueiros. Voltamos ao começo, tudo se trata de melhorar o sistema de roubo de
riquezas do trabalhador.
Imaginem se fossem os próprios trabalhadores que gerissem os recursos das
contribuições que fazem ao longo da vida, mais os outros impostos que foram
criados para financiar aposentadoria das gentes? Imaginem que esses recursos
não fossem desviados para pagar empréstimos que nunca aprovaram? Imaginem que
esses recursos não fossem entregues para salvar empresas de amigos ricos?
Acreditam em sã consciência que não haveria proteção e cuidado aos velhos, que
já tivessem contribuído tanto?
Hoje são 32 milhões de trabalhadores que recebem aposentadoria, a quase
absoluta maioria, salários de fome. E são esses os que impedem o crescimento do
país? Denise Gentil prova que não há rombo. Esse vídeo aponta os dados.
(https://www.youtube.com/watch?v=Z8TJyflXEqg)
O que está por trás da tal reforma da previdência é justamente mais uma
forma de extração de riqueza dos trabalhadores feita pelos capitalistas. “Não
pense em crise, trabalhe”. Esse é o mote dos governos . Trabalhe até morrer e
não cometa besteiras como atuar em sindicatos ou construir revolução. As saídas existem. Cabe aos trabalhadores
construírem as passagens.
Referências
GENTIL, Denise. Está sobrando (muito) dinheiro na
Previdência; entenda os números. Entrevista publicada no jornal Brasil de
Fato. (acesso em 27/12/2016). https://www.brasildefato.com.br/2016/07/22/esta-sobrando-muito-dinheiro-na-previdencia-entenda-os-numeros/
MARINI, Ruy Mauro. Subdesenvolvimento
e Revolução. Florianópolis: Insular, 2012.
MARX, Karl. O Capital: crítica
da economía Política. Livro I – o processo de produção do capital. São Paulo:
Boitempo, 2013
MÈZÁROS, Itzván. Para além do
capital. São Paulo: Boitepo editorial, 2002