O Rio Grande do Sul é o estado que tem hoje,
proporcionalmente, a maior dívida pública do país. Ela supera em mais de duas
vezes a receita. Passa dos 50 bilhões enquanto a arrecadação chega a pouco mais
de 20 bilhões. A dívida com a União ultrapassa os 40 bilhões, 98% fruto de um
refinanciamento de títulos mobiliários feito em 1998, no governo de Antônio
Britto (PMDB). Outros passivos da dívida são déficits previdenciários, precatórios
e empréstimos internacionais (perto de quatro bilhões). Outra pequena parte é
composta de empréstimos internacionais.
Observando as reportagens de jornais gaúchos sobre o que o
atual governador chama de “calamidade financeira” a impressão que dá é de que a
dívida apareceu de paraquedas no colo de Ivo Sartori. O máximo que se faz é
colocar a culpa nos governos passados (principalmente os do PT), como é normal
suceder. Mas, indo mais fundo nas pesquisas surgem as informações do período da
ditadura militar, durante o chamado “milagre econômico”, quando os governadores
biônicos emitiam Letras do Tesouro, pagando juros escorchantes, para fazer
andar as grandes obras estruturais típicas do regime. É quando a dívida vai
adquirindo as cores estratosféricas.
Com as sucessivas crises inflacionárias dos anos 80 o estado
já não conseguia resgatar as letras emitidas e os juros foram comendo o
orçamento. Além disso, no final da ditadura novos títulos foram emitidos para
poder garantir que as eleições fossem vencidas por pessoas amigas. E foi o que
sucedeu. Com a grande crise do final dos anos 80 e os planos de ajuste federal
a dívida mais uma vez foi às alturas. O Plano Real, que mudou a moeda,
quadruplicou os valores devidos, fazendo com que a dívida passasse a índices
absurdos. Foi aí que Antônio Britto, então governador, afinado com o governo
federal, refinanciou tudo (com novas taxas de juros), ganhando um fôlego para
algo que obviamente iria estourar no futuro.
E assim, sucessivamente, os governos que se seguiram foram
administrando a dívida existente e contraindo outras, já que o estado precisava
andar. “Até aí morreu neves”, como diz o velho ditado. Essa é a história de
todas as dívidas, seja dos estados ou mesmo do país. O que não se consegue
saber é em quê exatamente todo esse dinheiro foi gasto e se os contratos
firmados à época tinham legitimidade. Se considerarmos que o maior montante da
dívida foi contraído no período da ditadura, por si só já seria ilegítima, como
bem aponta o historiador Alejandro Olmos, um dos auditores da dívida do Equador
e especialista na dívida argentina. Um governo de exceção fazendo empréstimos
sem que o povo soubesse as regras do negócio ou como tudo foi gasto torna o
processo sem legitimidade. E se forem feitas as contas sobre o tanto de recursos
que já foram pagos em juros ilegais – estratosféricos – certamente essa dívida
já foi totalmente quitada. Mas, para isso, seria necessário fazer uma auditoria minuciosa. O Equador fez
isso e descobriu que 70% dos valores eram ilegítimos e ilegais. É de fundamental
importância para os gaúchos conhecer o conteúdo e regras dos contratos. Aí se
escondem as armadilhas.
Quem paga a conta
Historicamente quem paga a conta dos excessos dos governos
são sempre os mesmos: os trabalhadores. Quando as coisas apertam e os juros
comem todo o orçamento surgem os velhos bordões; “estamos falidos”, “precisamos
apertar os cintos” “é necessário um ajuste fiscal”, “tem que enxugar a máquina
pública”. Logo em seguida vêm os cortes nos serviços públicos e em setores do
estado que são minúsculos e que não representam quase nada no todo da dívida.
Agora, no Rio Grande do Sul, diante da quase impossibilidade
de mexer no orçamento, pouco menos de 2% está destinado aos investimentos, o
governador, que é do partido do atual presidente (PMDB), decidiu aplicar a
velha receita de cortar nos serviços à população em vez de enfrentar de verdade
a questão da dívida. Afinal, é bem mais fácil enfrentar os trabalhadores – que estão
sob seu comendo – que enfrentar os bancos.
No pronunciamento que fez essa semana (21) Ivo Sartori
(PMDB) anunciou não apenas o estado de calamidade financeira do estado como
também um pacote de medidas que, segundo ele, vai estancar a crise. No conteúdo
do pacotaço está a extinção de 11 órgãos ligados ao executivo, a redução de
secretarias, de 20 para 17 e a demissão de mais de mil trabalhadores entre
comissionados e efetivos. Segundo ele, isso vai garantir uma economia de 146
milhões ao ano, o que, no computo geral de uma dívida de bilhões nada mais é do
que uma migalha. Por outro lado, para o
setor privado isso é um grande presente, porque abre espaço para que possa se
expandir onde antes era o estado quem dominava. Como adverte o economista
Maicon Cláudio da Silva, do IELA, “quando o estado fecha estatais ou espaços
públicos encolhe os espaços público e joga para o capital fazer a sua festa.
Fechar a TV e a rádio publica significa dar mais poder ao setor privado”.
É fato que o estado rio-grandense vem sistematicamente
gastando muito mais do que arrecada, bem como mantém uma folha de pagamento que
chega a consumir quase 60% da receita, mas também é de conhecimento público que
alguns gastos – como os da publicidade e propaganda, por exemplo – são
exagerados numa situação de crise. Informações nos jornais do estado dão conta
de que para criar um consenso na população da necessidade de “cortar na carne”,
o governo encheu os bolsos do oligopólio midiático (RBS), gastando 3,5 milhões,
de março até agora. Ou seja, investiu dinheiro público na mídia comercial, para
convencer as gentes de que é preciso acabar com as empresas públicas que dão
“prejuízo”.
Não por acaso uma dessas empresas é a Fundação Piratini –
que garante a comunicação pública no estado através da TV Educativa e da Rádio
Cultura. Essa fundação é uma conquista histórica do povo gaúcho e desde o ano
de 1974 garante uma comunicação de qualidade no campo da informação, da cultura
e da arte.
O fechamento dessa fundação levantou em rebelião a classe
artística, jornalistas e população em geral que entende a importância de uma
comunicação pública, fora do contexto comercial, que não vê a informação, a
arte e a cultura como uma mercadoria. Poucos estados do Brasil podem se
orgulhar de ter um espaço de comunicação pública, controlado pela sociedade
civil. Durante todos esses anos a fundação caminhou entre os seguidos governos,
sempre garantindo espaço para o debate de todos os temas candentes do estado,
para os artistas, o cinema, enfim, a vida que vive e se expressa no Rio Grande.
A opção por fechar esse espaço de comunicação é uma jogada que fortalece cada
vez mais o oligopólio midiático e torna toda a vida cultural do estado refém da
lógica da mercadoria.
Segundo levantamentos feitos pelo jornalista Marco
Weissheimer, publicado no jornal Sul21, “a Secretaria Estadual de Comunicação
gastou este ano, até o mês de novembro, R$ 6.237.444,26 em publicidade
institucional. No mesmo período, a Assembleia Legislativa gastou R$
5.723.906,18 em publicidade institucional. Enquanto isso, políticas como a
qualificação de assentamentos receberam apenas R$ 372.801,60, em 2016. Já a
qualificação dos sinais de cobertura da TVE e FM Cultura recebeu R$ 156.760,92
e a qualificação dos recursos humanos na administração recebeu apenas R$
10.350,52”. Ele mostra também que só o jornal Zero Hora (da RBS) recebeu mais
recursos que a TVE, a Rádio Cultura e o setor de recursos humanos da fundação
juntos. Ou seja, isso evidencia uma opção deliberada pelas empresas privadas em
detrimento da pública. E, quem perde com isso é a população que fica cada vez
mais exposta a um pensamento único, produtor de mais-valia ideológica.
A decisão de Ivo Sartori não surpreende já que vivemos num
tempo em que a comunicação é um dos commodities mais importantes no mundo. Com
a informação domesticada os donos do capital conseguem inventar um futuro. Eles
lançam “verdades” que, incorporadas como tal no presente imediato, tornarão o
futuro tal qual eles querem que seja. Assim, é a partir da informação que o
sistema capitalista de produção consegue criar mais um momento de expansão do
capital. E, para isso, a comunicação precisa ser privada. Não pode estar
controlada pela sociedade. Logo, aproveitar a dita “calamidade” para destruir
justamente a comunicação pública, é um passo natural para qualquer um que
esteja aliado aos interesses da classe dominante.
Importante ressaltar que o estado que hoje temos não é mais
o velho estado liberal burguês, amparado num pacto social, com algumas
garantias para os de baixo. Esse estado que surgiu com as repúblicas está morto
e enterrado. O que temos na atualidade são empresas travestidas de estado, cujo
objetivo é facilitar para a burguesia a gestão da expansão cada vez maior do
capital. Não é sem razão que estamos vendo, sistematicamente, os presidentes
dos países, os governadores de estados e prefeitos, serem nada mais do que
“gestores”, gerentes, capitães do mato. Elegem-se inclusive com essa consigna.
Vejam figuras como Trump, nos Estados Unidos, João Dória, em São Paulo ou
Marcelo Crivela, no Rio de Janeiro. São incensados por sua capacidade de
esgrimir os problemas sociais, resolvendo as questões sempre do ponto de vista
fiscal, financeiro ou de gestão. Na verdade, esses governantes - logo, logo -
perderão até o nome de presidentes, governadores e prefeitos e serão chamados
de CEO ( a sigla em inglês para chefe executivo). Por exemplo, Michel Temer é o
CEO da empresa Brasil, assim como Sartori é hoje o CEO da empresa Rio Grande do
Sul. Meros gerentes do capital.
Não se enganem, portanto, com o discurso de que o estado
está falido. A tática envolve, primeiro, criar um consenso via mídia privada, e
depois aplicar o bom e velho chicote no lombo dos trabalhadores, afinal são
eles, e só eles, os que podem produzir valor (a riqueza material). Com isso, o
governo fica autorizado a aplicar medidas amargas como o desemprego e o
sucateamento dos serviços públicos. Tudo
isso para seguir pagando uma dívida que – com certeza - já foi paga, com o
sacrifício de todos os gaúchos e gaúchas. Mas, para o capital, as pessoas são
mero detalhe. Não importa quantos tenham de morrer, quantos pais de família
precisem ser destruídos, quanta dor e sofrimento sejam causados nos trabalhadores.
O que importa mesmo é equilibrar as contas, permitindo que os juros da dívida
sigam sendo pagos.
Há um dado no caso gaúcho que é a folha de pagamento dos
trabalhadores. Segundo o governo há que demitir, pois a folha consome bem mais
do que permite a lei de responsabilidade fiscal, chegando a quase 60% das
receitas. Mas, se esses trabalhadores são aqueles que permitem que os serviços
públicos sejam oferecidos à população com qualidade eles não são um gasto, são
um investimento. Claro que isso na perspectiva de quem está se importando com
as gentes. O que não é o caso. Os estados-empresas só tem uma preocupação:
cuidar para que os bancos sigam comendo sua odiosa ração, constituída da força
de trabalho dos trabalhadores. Para isso é preciso jogar mais gente no
desemprego, para baratear a força de trabalho e mantem os trabalhadores sob a
ameaça constante da fome e da miséria.
É por isso que a Fundação Piratini está entre as vítimas.
Porque ela tem alcance no estado, ela é pública e ela pode ser uma “rugosidade”
na pretendida manufatura da opinião pública. Como ela possibilita o espaço para
as vozes dos movimentos, dos artistas, dos intelectuais, pode ser um grande
entrave para o projeto de sistemática dominação do sistema capitalista de
produção.
Nesse sentido, é fundamental a resistência do povo gaúcho
contra o desmonte das empresas públicas. Elas são o pouco que resta da velha
lógica da “res pública”, o pouco que ainda não foi sequestrado pelos bancos e
pelo centro do poder. Assim, a batalha pela manutenção da TVE e da Rádio
Cultura, não é uma batalha qualquer. É a trincheira estratégica que pode
colocar barreira ao projeto dominante. Porto Alegre, onde fica a sede dessas
empresas públicas, tem nas mãos o futuro do Rio Grande. Vencer a batalha da
comunicação sobre a concepção de estado é praticamente começar a vencer a
guerra contra o capital.
É tempo de os trabalhadores organizados pararem a avançada
do estado/bancário/empresa. Se a reforma de Sartori passar, abre a porteira
para a tropa toda. Assim que os gaúchos e gaúchas de todas as querências estão
com essa tarefa histórica para cumprir.
Essa luta é grande, mas não é impossível. Estamos juntos!