Alzheimer/Velhice

sábado, 17 de setembro de 2016

Eu cresci na 28, em meio as putas


No bar, meu avô Dionisio e nós, os três irmãos.Eu sou a menor das gurias.

A rua 28, em Uruguaiana, na Banda Oriental, hoje parte do Rio Grande, é mítica. Ali, eu passei a minha meninice. Morávamos então na casa do meu avô Dionísio. Ele tinha um bar, bem na esquina em frente ao bebedouro, e do lado do Instituto Rio-grandense do Arroz. No entroncamento das ruas passava o trilho do trem e nossa diversão era ver a Maria Fumaça passar, deixando aquele rastro de rolos brancos no céu, no barulho característico tlac-tlac-tlac.

Meu vô era um italiano alto, forte e bom. E naqueles dias abrigava nossa família por conta dos reveses da falta de dinheiro. O bar, não só funcionava como um armazém, mas era também abrigo dos que vinham visitar o bordel da cafetina mais famosa da região. Ali, eles faziam o esquenta, antes de entrar para o palácio das delícias. Os produtos que mais saíam eram a pinga e o salame. Eu tinha uns três ou quatro anos, e uma das minhas tarefas era justamente a de picotar o salaminho, em pequenas rodelas, que eram servidas como aperitivo no longo balcão de pedra, onde se debruçavam os que caçavam amores fortuitos.

A “casa das putas” como chamavam, ficava colada à casa do vô, separada apenas por um portão. Durante o dia, era comum eu e a minha irmã passarmos para o lado de lá, circulando entre as mulheres que tomavam sol, penteavam a cabeleira ou raspavam as pernas. Havia cheiro de rosas, de lavanda, de pó de arroz e elas gostavam de brincar com a gente. Eu imagino que nem a mãe, nem a vó tivessem qualquer preconceito porque essas visitas eram comuns e as mulheres também estavam sempre cruzando o portão, para alguma coisa ou outra.

Eram as mulheres do bordel as responsáveis também pelo passeio mais lindo que fazíamos: os passeios de carruagem. Elas tinham duas delas, bonitas, de madeira reluzente, puxadas por cavalos, e forradas com cetim vermelho. Um cenário de sonho que nunca se descolou das minhas retinas. Vez em quando elas nos levavam para percorrer a cidade e eu ainda sinto o cheiro adocicado dos perfumes e ouço os risos de cristal. Aquelas mulheres me apareciam como fadas, princesas, rainhas. Eram bem vestidas, cheirosas e tinham aquelas incríveis carruagens. Até hoje a lembrança daqueles dias me provoca ternura.

Vez em quando, nos cálidos finais de tarde de verão, elas saiam para passear na calçada, ao redor do bebedouro, onde os homens amarravam os cavalos. Era outra visão de sonho, aquelas mulheres vestidas de tafetá, com sombrinhas de pano tão chiques, e longas piteiras nas mãos. Como nós as conhecíamos, corríamos para elas, circulando de mãos dadas, cheias de orgulho das amigas tão lindas.

Meu avô ficou apenas alguns anos no bar. Homem da terra, não tinha lá muito tino para negócios. Tanto que nos verões modorrentos de Uruguaiana, bastava que chegássemos com os amiguinhos na calçada e ele já chamava, mandando o Beto – que era meu tio – distribuir picolés de abacate para toda a reca de gurizada. Tudo de graça. Também saia, de graça, farinha, pão, arroz, feijão, batata, cebola e qualquer outra coisa que algum necessitado sem dinheiro pedisse. Um belo dia, já sem capital, fechou o bar e voltou para a roça.

Daquelas vivências no bar da 28, penso que muitas foram formadoras da pessoa que sou. Essa curiosa vontade de horizontes, fruto das caminhadas nos trilhos que pareciam não ter fim. O amor pelas viagens, despertado pelo apito do trem que evocava lugares e caminhos distantes. Seguir o trilho, o tlac-tlac da Maria Fumaça era como um chamado xamânico que me toma até hoje. Essa capacidade de estar com o distinto, o diferente, e não temê-lo.

Nesses tempos em que o ódio parece ser a regra e tudo que não é igual ao que somos provoca violências, eu agradeço aos meus avós e aos meus pais que nunca trancaram o portão que nos separava da casa das putas. Que nos permitiram conhecer um mundo diferente, sem medo, e fazer com que cada uma daquelas mulheres fosse respeitada como uma amiga querida. Naqueles dias, eu não entendia porque as mulheres que nos viam passar na carruagem olhavam para o carro com tanto nojo. Para mim, a vida, ali dentro daquela maravilha de cetim, era espaço de amor, carinho e cuidado. Lembro-me da minha carinha, de olhos graúdos e curiosos, assomada na janela de madeira, enquanto pensava que eu mesmo era uma princesa, ainda que usasse casaquinhos rotos.

A rua 28 vive segue viva em mim. E vez em quando, nas noites, escuto o toque da gaita, o cheiro da pinga com salame, as risadas e o tropel dos cavalos. E aquelas mulheres, cheias de universos conversam comigo ao pé do bebedouro. Ainda somos irmãs.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

A democracia manca



TAEs, professores e estudantes já estão em luta

Alguns professores do Centro Socioeconômico da UFSC propuseram, no Conselho de Unidade, mudar as regras da eleição que, na UFSC, historicamente, tem sido feitas na paridade. Ainda não é o modo ideal, pois significa que cada categoria (técnicos, professores e estudantes) tem um peso diferente. Entre os TAEs, a reivindicação histórica é pelo voto universal, uma pessoa, um voto. Mas, no embate, o que se conseguiu até agora foi a paridade.

Pois tem professor que quer voltar atrás, mergulhar no atraso, no autoritarismo. E a proposta que agora começa a tomar corpo é a de realizar as eleições com o peso de 70% para os professores e os técnicos e estudantes dividindo os 30% restantes. Uma proposta que só encontra eco na arrogância.

Mas, o que se vê entre os que propõem o 70/30 é a velha prática do dois pesos/ duas medidas. Segundo mensagem que circula entre os TAEs e professores, enviada pelos trabalhadores dos Cursos de Economia e Relações Internacionais, pelo menos nesses cursos tem professor que pede democracia em nível de Brasil, mas trabalha pela diminuição dela no CSE.

Os TAEs divulgaram o manifesto - que foi construído pelos professores - intitulado “Impeachment, política externa e democracia: as consequências do golpe”, no qual os professores repudiam o golpe em curso no Brasil, chamando para a defesa da democracia. O manifesto é assinado por quatro dos professores que são representantes dos cursos no Conselho de Unidade. Logo, presume-se que se defendem a democracia no âmbito do governo federal, deveriam primar pela defesa no seu espaço de atuação, a UFSC.

Diz o manifesto: “Os ataques aos direitos conquistados pelos trabalhadores promovidos pelo governo de Michel Temer ferem conquistas alcançadas com muita luta, e a retirada desses avanços sociais pune os trabalhadores e deixa livres as irresponsabilidades das decisões políticas dos governantes”. Pois então, podemos agregar a isso que exigir a eleição pela regra anti-democrática dos 70/30 também é ferir e atacar os direitos conquistados pelos trabalhadores da UFSC e do CSE, já que a eleição paritária é resultado de grandes batalhas.

O documento assinado pelos professores dos cursos de Economia e RI termina assim: “Em defesa da democracia, pela manutenção dos direitos conquistados pelos trabalhadores, por maiores investimentos para a educação e por uma política externa democrática e participativa, manifestamo-nos contra o governo do presidente Michel Temer e sua agenda política elitista e conservadora”. Pois agora espera-se que  também em defesa da democracia e da manutenção dos direitos conquistados, os professores que representam os dois cursos no Conselho de Unidade sigam suas próprias palavras.

Assinam o manifesto os professores: - Clarissa Franzoi Dri, Daniel Ricardo Castelan,  Graciela De Conti Pagliari, Helton Ricardo Ouriques, Jaime Cesar Coelho, Karine de Souza Silva, Lucas Pereira Rezende, Marcelo Arend, Patrícia Fonseca Ferreira Arienti, Pablo Felipe Bittencourt e  Pedro Antonio Vieira.


Entre os TAEs, estudantes e professores que já se mobilizam contra o golpe e o retrocesso do 70/30, fica a expectativa de que os conselheiros que fazem parte do Conselho da Unidade realizem as discussões sobre o tema da s eleições de maneira aberta, com um debate franco e que a democracia seja defendida. Nenhum passo atrás. Pelas regras paritárias até que chegue o voto universal. O caminho deve ser adiante e não o retorno ao autoritarismo e a arrogância. 

terça-feira, 13 de setembro de 2016

A política da cidade



Uma cidade para a maioria - Foto: eduardovalente.com.br 

Num sistema como o nosso, executivo e legislativo atuam em sintonia. Não adianta eleger um prefeito progressista ou de esquerda, e colocar na Câmara de Vereadores, gente de direita ou atrasada. O legislativo pode barrar projetos, recursar leis e tudo mais. Tem que ser casado.

Agora, em Florianópolis, estamos vivendo mais um momento de eleição. Os candidatos se apresentam e disputam a cidade. Para mim, o certo mesmo era não ter candidato de esquerda. Estamos sob golpe em nível nacional. Mas, ao que parece, isso não impede que os partidos participem do pleito municipal, muitas vezes com alianças “doidas” demais.

Resta tomar a decisão. Ou votar nulo ou escolher alguma opção que possa ser melhor para o projeto de cidade que defendemos. Dentre os sete candidatos à prefeitura – três mulheres e quatro homens -  tirando o Elson (PSOL) e Gabriela (PSTU), o demais é mais do mesmo. Os defensores do capital na versão forte, e os da versão suave. Nenhuma ilusão com eles. Elson tem um acúmulo que vem da eleição passada, quando ele defendeu o projeto de cidade que estava bastante afinado com as lutas que vínhamos travando no debate do Plano Diretor. E Gabriela traz a proposta abrangente do PSTU, sem muita afinação com as questões mais paroquiais.

Dentre os candidatos à vereança, vivemos o suprassumo do surreal, com as candidaturas de dez pessoas, que já são vereadores na legislatura atual, e que concorrem à reeleição apesar de denunciados pelo Ministério Público na Operação Ave de Rapina, aquela que investiga casos de corrupção. Dois deles chegaram a ser julgados na Câmara por quebrarem o decoro, e foram absolvidos. O mais louco é que todos eles podem ser reconduzidos, justamente por conta do bom e velho poder econômico que dispõem para incentivar o voto.

Eu, que sou uma otimista indômita, fico na esperança de que as pessoas usem o cérebro para votar. Que coloquem no legislativo municipal pessoas que realmente vão atuar na defesa de uma cidade boa de viver, com prioridade para os seres viventes e não para as máquinas, o cimento e o lucro de alguns. 

Não dá para votar em alguém só porque é amigo, conhecido ou parente. Tem que ver qual é o projeto de cidade que a pessoa defende. Que interesses estão por trás da pessoa? Quem o financia? Quem paga pela campanha é quem vai mandar no vereador. Sem essa informação, a gente está entregando o voto para alguém, que pode até ser legal e nos dar uma coisinha, mas que lá na frente vai atender a interesses outros que não os da maioria.

Esses vereadores que foram denunciados pelo Ministério Público são acusados de receber dinheiro para barrar ou forçar a aprovação de projetos de interesses de empresas, que no mais das vezes, eram contra os interesses da maioria da população.

O vereador é nossa ligação mais próxima com a administração da cidade. Com ele podemos participar ativamente de todas as decisões sobre a vida de todos nós. É esse vereador que chama para o debate, que se curva aos desejos da maioria das gentes, aquele que deve contar com nosso voto.

Eu já escolhi o meu. Votarei no Lino Peres, que nessa legislatura em curso, efetivamente tem representado os interesses de todos aqueles que lutaram pelo Plano Diretor Participativo, pelas demandas dos negros, das mulheres, das comunidades de periferia, por uma melhor mobilidade, enfim, por temas que envolvem as pessoas comuns, e não os grupos de poder ou de interesse econômico. Claro que há outros candidatos que certamente farão o mesmo trabalho, e é eles que devemos elevar à condição de vereador. Colocar ali, na Câmara, um número maior de pessoas que pratiquem o que o filósofo Enrique Dussel chama de “poder obedencial”, ou seja, que legislem baseados nos interesses da maioria dos trabalhadores, das gentes que constroem de fato essa cidade.

Na última legislatura tivemos dois vereadores de oposição: Lino e Afrânio. Duas pessoas lutando pela cidade de verdade. Tem que ter mais. Já basta dos sugadores da esperança pública. Escolha bem o seu candidato. Não vote por amizade ou interesse pessoal. Pense que a cidade é a sua casa e é preciso que os que estão na Câmara sejam capazes de cuidá-la bem. 

Eu quero uma cidade na qual as pessoas possam se mover, que o transporte público seja bom e eficaz, que haja planejamento, que o cimento não engula a beleza, que os parques proliferem, que não se renda à ganância ou ao turismo para os ricos. Que seja desfrutável por nós, os sem dinheiro, que garanta a sobrevivência da cultura originária, que acolha os forasteiros sem olhar a condição social, que garanta água pura e vida boa.

Penso que podemos construir essa cidade. Mas não será com os velhos modelos de políticos, representantes dos ricos, dos empresários e dos graúdos. É tempo de darmos chance ao novo, ao que busca caminhar com a maioria. E, ainda que não seja o candidato perfeito – coisa difícil de achar – eu vou de Elson, 50. Um fio de esperança, mas pelo qual vale a pena sair de casa e votar.

A luta não se esgota na prefeitura e essa não é a mãe de todas as batalhas. Mas é a que temos para hoje. 

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Nosso lugar: Campeche





Fotos: Rubens Lopes

Quem vive no Campeche sabe: os caminhos de areia que correm para o mar são a nossa praça. Não temos qualquer lugar de encontro a não ser a praia. E ali, a vida se expressa, parceira da luminosidade do sol e do barulho incessante do oceano. E foi por esses caminhos que alguns fotógrafos, dispostos a desenhar belezas se encontraram. No raiar da manhã, na puxada do arrastão, nas manifestações culturais, na missa dos pescadores. No enredar dessa cultura peixeira nasceram imagens, que falam, em luz, de tudo aquilo que faz a nossa comunidade ser o que é. Esse espaço de maravilhas, de gente amiga, de companheiros.

No último dia 10, quatro fotógrafos: Milton Ostetto, Ronaldo Andrade, Hermes Daniel e Paulo Heise, lançaram um livro no qual juntam essas imagens, recolhidas no abraço fraterno com as gentes do lugar. Foi no Rancho de Canoa do seu Getúlio, foi bonito, foi singelo, como é a nossa comunidade. O trabalho, que leva o nome de “Um lugar chamado Campeche” já está praticamente esgotado, esperando uma segunda edição. Mas ainda restam alguns exemplares. Quem quiser é só entrar em contato com o Milton, pelo facebook.


Nas folhas do livro estão as imagens do Campeche da gente. E, apesar de no papel, elas não estão congeladas, porque vivem em todos nós. O Campeche é essa cornucópia de maravilhas, capturado por olhos amorosos. Vale a pena ver.