Alzheimer/Velhice

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Programa Pensamento Crítico

Trabalho de análise da conjuntura latino-americana produzido pelo Instituto de estudos latino-Americanos. Imagens e edição: Rubens Lopes. Apresentação: Elaine Tavares. O tema do número 07 é o trabalho. 


terça-feira, 28 de junho de 2016

O preço do feijão e o soylent green



Poucas coisas exerceram tanta influência em mim como o filme de Richard Fleischer, Soylent Green, que no Brasil foi comercializado com o nome de “No mundo de 2020”. Lembro como se fosse hoje a matinê na qual o assisti, nas cadeiras vermelhas e confortáveis do então novíssimo Cinema Presidente, em São Borja. Fora ver o filme porque era com o ator Charlton Heston, pelo qual eu nutria profundo amor por conta de seus filmes bíblicos. Inesquecível Ben Hur. Mas, não estava preparada, nos meus alegres 15 anos para o que vi. Lembro que fiquei no escuro do cinema, depois que subiram as letras finais, com as lágrimas correndo devagarinho pelo rosto e ao longo dos dias que se passaram comecei a compreender que a vida humana não pode estar – jamais  - desconectada da natureza. Percebi que não existe uma natureza lá fora de mim, e eu, ser que domino e manipulo. Tudo é um.

Mais fortes ficaram as palavras do grande chefe Sioux Tatanka Yatanka (Touro Sentado)  que em carta ao presidente dos Estados Unidos ensinou:  “Causar dano à terra é demonstrar desprezo pelo Criador. O homem branco também vai desaparecer, talvez mais depressa do que as outras raças. Continua sujando a sua própria cama e há de morrer, uma noite, sufocado nos seus próprios dejetos. Depois de abatido o último bisão e domados todos os cavalos selvagens, quando as matas misteriosas federem à gente, quando as colinas escarpadas se encherem de fios que falam, onde ficarão então os sertões? Terão acabado. E as águias? Terão ido embora. Restará dar adeus à andorinha da torre e à caça; o fim da vida e o começo pela luta pela sobrevivência”.

Creio que naquele domingo, no trajeto entre o cinema e a minha casa tornei-me ecologista. Não desses que olham a natureza como uma coisa externa ao humano, mas os que entendem que tudo é Pacha (o universo ordenado, o existente) e está interligado.

Falo tudo isso para comentar do preço do feijão e do leite, que nos últimos tempos tem se apresentado como elementos de exclusão. Nossa base alimentaria - o feijão – cada dia vai ficando mais longe da nossa mesa. Está caro demais. O leite custa seis reais o litro. Impensável. O que está acontecendo?

Ocorre que poucos são aqueles que estão produzindo comida mesmo. O sistema capitalista de produção que se apodera das terras para dar vazão ao plantio de monoculturas de exportação está destruindo o mundo camponês, esse que produz a comida nossa de todo dia. Isso vem de muito tempo, mas agora está chegando a níveis perigosos. Nosso estado de Santa Catarina é um exemplo desse terror. Quilômetros e mais quilômetros de pinus nas terras onde antes brotava o trigo, o feijão, a mandioca, o tomate, a maçã. A terra se exaurindo, uns poucos ganhando dinheiro e pequenos produtores iludidos com as parcerias das papeleiras.

O mundo capitalista não quer saber das gentes. O que precisa produzir é lucro. Se, para isso, for necessário massacrar milhões, que seja. No seu brilhante texto sobre acumulação primitiva Karl Marx descreve como, no início do capitalismo, os ingleses destruíram as propriedades produtoras de comida para criar as ovelhas que alimentariam com lã as máquinas das fábricas de tecido. Por conta disso gerou-se um gigantesco êxodo de gente para a cidade que, por sua vez, iria alimentar o monstro do capital, com seus corpos e os dos seus filhos.

Hoje, no Brasil e na América Latina vivemos novo ciclo de acumulação primitiva do capital. O campo vai se apequenando para as gentes e para a produção de alimentos. Produz-se a soja para exportação, cria-se gado ou então se expulsam as famílias para a extração de minérios. A terra especulada. E danem-se as pessoas. O que vale é a bolsa de valores e seu capital de mentira.
Mas, o fato é que as pessoas precisam comer e alguém tem de produzir comida. Senão, que vamos ingerir para manter a vida? Produtos criados em laboratório? Pílulas de energia? Quê?

O filme 2020 mostrava, nos anos 70, o que poderia acontecer no futuro se o homem seguisse com seu processo de destruição da natureza. Falava de um amanhã longínquo demais, pura ficção científica. E, como sempre acontece com a arte - que é a antena do humano – mostrava o quanto o sistema capitalista de produção pode ser engenhoso e sagaz nas soluções que encontra para continuar se reproduzindo e lucrando com a maioria.

A descoberta do detetive Robert Thorn, em meio a uma crise de fome na cidade onde vive, que naqueles dias me pareceu estarrecedora, hoje apareceria como estranhamente natural. Porque hoje eu já sei como é que funcionam as entranhas do sistema e o que efetivamente tem valor para os que dominam. Ao sistema capitalista e seus operadores, pouco importa o que acontece com a maioria das gentes. Esses seres que não conformam o topo da pirâmide social sempre serão usados pelos graúdos como carne moída para a manutenção do modo de vida atual. E o que é pior, serão a carne comida pelos seus próprios companheiros, garantindo a reprodução da vida dos que realmente produzem a riqueza, tal qual no filme.

Naquele dia perdido no passado, pelos olhos de Charlton Heston eu também me fiz comunista, mesmo sem saber. Saí dali disposta a não permitir que o ano de 2020 fosse como anunciava a ficção. Nenhuma pessoa teria que passar pela dor de comer seu irmão, seu pai, sua mãe, sua amiga, para seguir servindo os ricos. Haveria que salvar as gentes e a vida toda.

Hoje, passados tantos anos estou aqui, diante da tela do computador, com lágrimas nos olhos, lendo sobre o preço do feijão e do leite, sentindo o bafejo do ano 2020 no cangote, e pensando que talvez tudo seja como a ficção pensou. Sinto calafrios.

Mas, apesar do terror, não me imobilizo. Pelo contrário. Mais motivos tenho para seguir desvelando a realidade e lutando para que um novo jeito de viver seja construído pela ação das gentes. Há tempo ainda. Espero...



segunda-feira, 27 de junho de 2016

Colômbia e o difícil caminho para a paz

Há muitos guerrilheiros e muita estrada para trilhar na busca pela paz 
A notícia sobre a saída do Reino Unido da União Europeia foi destaque nos noticiários e ofuscou outra notícia importante acontecida na mesma semana: o acordo de paz entre o governo colombiano e as FARC-EP, fato que para as gentes de Colômbia certamente tem muito mais significado do que a longínqua decisão europeia.  Mergulhado em um conflito que, na prática, dura 68 anos, o povo colombiano espera pela paz acreditando que, com isso, possa retomar a vida que de certa forma se rompeu no triste “bogotazo”, quando – após o assassinato do candidato à presidência Jorge Gaitán – as gentes se levantaram em rebelião. E o que era para ser um protesto que visava a punição dos culpados e a retomada da legalidade acabou se transformando numa espiral de lutas, violências, crimes e terrorismo de estado.
A Colômbia é um país relativamente pequeno com pouco menos de dois mil metros quadrados (1.141 km2) que abrigam 48 milhões de almas, mas fica numa posição bastante estratégica na geopolítica mundial: na ponta noroeste da América do Sul, com saída para o Pacífico e mar do Caribe, e fronteiras com Brasil, Venezuela, Peru e Equador. Justamente por isso tem como principal aliado os Estados Unidos, o qual já instalou naquelas terras sete bases militares que se configuram em ameaça constante aos países da região.
Desde seu nascimento como nação livre, o país tem papel bastante controverso na história latino-americana. Vista como uma região estratégica também por Bolívar, o libertador, foi justamente seu general, Santander, que sonhava em ser presidente da Colômbia, o que traiu todo o sonho de integração que embalava a proposta da Gran Colômbia, apostando na balcanização, a qual gestaria várias nações e vários presidentes.  A partir daí o território colombiano sempre foi um espaço de disputa entre liberais e conservadores. Com o alinhamento do país à Inglaterra e depois aos Estados Unidos, o único destino possível foi a dependência e a subordinação.
O ano de 1948, no século XX, marcou outra espiral de turbulências, quando, em abril, foi assassinado Jorge Gaitán, que despontava como uma possibilidade progressista para o país. Sua violenta morte provocou o levante da população – principalmente camponesa – e deu início a formação de grupos armados, dispostos a levar o país para outras paragens, de liberdade e de paz. Naqueles dias os partidos tradicionais resolveram criar uma frente nacional, deixando de fora os principais protagonistas da vida colombiana: o povo em luta. E isso acabou sendo a semente para o nascimento da guerrilha que, com muitos matizes, emergiu. Um dos grupos mais fortes foi o chamado Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (FARCs) que caminhou com os liberais até 1964 e a partir daí, já bastante inspirados na revolução cubana, assumiu fortemente sua convicção socialista e comunista.  
A partir dos anos 60 o perfil das FARC e de outros grupos armados se consolida na proposta de criação de um estado socialista, e por toda a América Latina vão nascer outros movimentos guerrilheiros como na Guatemala, na Nicarágua e em El Salvador. As frentes de libertação nacional atuaram de forma profunda na história latino-americana apontando caminhos que não se alinhavam aos desejos do império estadunidense, e por isso, a mão dura dos EUA foi sentida por toda a região. Mesmo onde houve vitória, como na Nicarágua, o ataque dos mercenários a soldo dos Estados Unidos, conseguiu fazer com que a proposta fosse se diluindo até a derrota final.
A Colômbia, apesar de todo o apoio militar e estratégico dos Estados Unidos, resistiu bravamente na luta armada. Foram então introduzidos outros elementos para a desarticulação da guerrilha e um dos mais importantes foi o do “combate às drogas”. Como o país não conseguia dar respostas ao povo no que diz respeito aos direitos mais básicos, foi nascendo um poder paralelo criado pelos traficantes de cocaína, que, no começo, apareciam como os “protetores” das gentes, seja na garantia de direitos ou na garantia da vida mesma.  Depois, até mesmo esse setor que funcionava ao estilo “hobin hood” também foi inoculado com o modo de produção capitalista e a droga passou a ser um poderoso braço comercial, garantindo a riqueza de muita gente da classe dominante.
E foi justamente com o argumento de combater o tráfico que o governo local estreitou sua relação com os EUA. A partir daí, a cessão de território para bases militares e os acordo com as Forças Armadas estadunidenses – que incluem até a total anistia a qualquer crime cometido pelos marines no território – só aprofundaram a submissão.
Também se fortaleceram grupos paramilitares que fazem o combate aos grupos guerrilheiros, bem como as ações terroristas por parte do próprio estado. A Colômbia seguiu então mergulhada na violência, com as populações sendo movidas para lá e para cá, em desalojamentos forçados. Ao mesmo tempo, as lutas pontuais como a de estudantes, professores, camponeses, sindicatos, foram também criminalizadas e permeadas com a ação dos grupos de assassinos, tanto dos paramilitares como dos exércitos. Todo o tecido social é impregnado pela corrupção e pelos interesses do narcotráfico. Não bastasse isso, a própria guerrilha foi cindida pelo narcotráfico, tornando o território colombiano um espaço complexo e amalgamado pela violência.
A busca pela paz
Os anos 90 encontraram a Colômbia tentando buscar saídas para os conflitos. Houve uma nova Constituição no início da década e muitos grupos guerrilheiros se desfizeram. Mas, as FARCs seguiam com seu intento de construir o socialismo e não deixaram as armas. Naqueles dias se fortaleceram as ações de sequestros espetaculares que deixavam o governo em maus lençóis. Novas tentativas de acordo de paz se fizeram no final da década através do presidente Andrés Pastrana, que concebeu o Plano Colômbia em parceria com os Estados Unidos. Mas, como o tal plano nada mais era do que mais um passo de ingerência dos EUA que visava justamente o fim das FARCs, e não havia garantias de destruição dos grupos paramilitares, muito menos do fim da ação terrorista do governo, não foi possível chegar a nenhum acordo.  E, a chegada ao poder de Álvaro Uribe, em 2002, tornou ainda mais difícil a paz.
A ação de Uribe se referia à destruição das FARC. Era um ponto de honra para ele e não foi sem razão que seu período de governo foi o mais violento, com o apoio descarado às forças paramilitares e até ao narcotráfico – do qual ele comprovadamente faz parte. É Uribe também quem vai reforçar ainda mais a submissão aos Estados Unidos com a consolidação do Plano Colômbia (chamado paradoxalmente de plano de paz). Óbvio que essa investida de Uribe só redundou em um aprofundamento da violência e mais problemas para a população.
Com a chegada ao poder de Juan Manuel Santos, veio, outra vez, a proposta de retomar as conversas para a paz e a cidade de Havana, em Cuba, foi o território neutro, ponto de encontro das equipes de negociação. Muitas foram as conversas e as tratativas para se chegar ao cessar fogo bilateral, proposta fechada na semana que passou. Do ponto de vista do governo colombiano, o acordo faz parte do Plano Paz Colômbia, um desdobramento do velho Plano Colômbia celebrado 15 anos atrás. Por isso, a paz firmada nesse dia 23 de junho ainda é uma incógnita.
O que diz o acordo
O comunicado conjunto nº 76 define um acordo em dez pontos concretos. O primeiro deles é sobre o cessar fogo e a deposição das armas. Depois, define que haverá garantia de segurança na luta contra as organizações criminosas que seguem realizando massacres e assassinatos na Colômbia, impedindo a paz.
Outro ponto elenca uma série de compromissos entre as partes que venham garantir o surgimento de uma cultura de paz no país, calcada na democracia e no livre debate de ideias. Também determina que em 180 dias deverá ser apresentado um acordo final. Mas, para que isso aconteça será necessário o completo cessar fogo que será acompanhado por um monitoramento, coordenado de forma tripartite (governo, FARC-EP e um representante internacional).
As forças armadas da Colômbia deverão garantir a retirada de homens do território onde estão as FARC-EP para que possa se processar o desmonte dos atuais acampamentos. Serão criadas 23 zonas de normalização, onde se dará o processo de reintegração dos militantes à vida civil. Serão escolhidos representantes dos grupos armados para que circulem em liberdade pelo país e pelas zonas para que levem a cabo os trâmites da paz.  Nessas zonas, os militantes das guerrilhas ficarão em acampamentos nos quais serão capacitados para as novas funções na vida civil. E, ao redor desses acampamentos será estabelecida uma zona de segurança na qual não poderá ter qualquer força pública ou de guerrilha.
Fica acordado também que será fechado um protocolo garantindo a segurança de todas as pessoas, tanto as que estiverem nos acampamentos, quanto as que estiverem se deslocando par aas reuniões com o governo.
Também ficou decidido que as armas da guerrilha serão entregues. Parte do arsenal será destruída e outra parte servirá para a construção de um monumento que marcará o início de um novo tempo na Colômbia. Assim, apenas as forças do estado terão o monopólio das armas.
O acordo se configura em um Pacto Nacional que envolverá também todos os partidos e movimentos sociais da Colômbia. Haverá a criação de uma Comissão Nacional de Garantias de Segurança que vai coordenar o combate às organizações criminosas. Também será criada uma Unidade Especial de Investigação para dar combate às organizações paramilitares. Outra estrutura a ser criada é o Sistema Integrado de Segurança para o Exercício da Política, que deverá determinar um modelo de garantias e direitos aos cidadãos e proteção aos movimentos sociais e políticos.
Por fim haverá um Programa Integral de Segurança e Proteção para as comunidades e organizações que estarão nos territórios acordados com a ativação de um corpo de elite da Polícia Nacional para atuar nessa zona.
Os problemas
O aperto de mão entre o presidente da Colômbia e o representante das FARC-EP fez com que a população colombiana celebrasse, afinal, são as pessoas comuns, que vivem o cotidiano da vida, que sabem muito bem o que é viver no medo, entre o fogo cruzado do exército, guerrilha, narcotraficantes e criminosos de toda monta. Ao longo de todos esses anos não há uma única família que não tenha sofrido a ação da violência desencadeada no longínquo “bogotazo”.
Mas, ainda assim, apesar da alegria pela assinatura do acordo, todos sabem que não será um processo fácil. Primeiro porque o acordo se dá nos marcos do Plano Paz Colômbia, o qual tem o dedo dos EUA. E, depois, porque existem antecedentes ainda muito vivos na memória do que pode significar depor as armas e confiar no governo. No final dos anos 1980, quando da discussão da nova Constituição que iria ser promulgada em 1991, alguns grupos guerrilheiros se dispuseram a aceitar um acordo de paz, entre eles o M-19, o EPL, o Quintín Lame e o PRT, e foi discutida toda uma estratégia de reintegração dos militantes.
Há quem diga que aquele momento, em 1991, foi o primeiro passo para a consolidação da paz que hoje se avizinha já que muitas lideranças desses movimentos entraram para a vida civil e para a vida política institcional. Mas, também há os que dizem que muita gente morreu por ter confiado no governo depondo as armas. Há relatos de assassinatos cirúrgicos de muitas lideranças desses grupos e também do completo abandono da maioria dos militantes depois do acordo.
Outro elemento preocupante é a criação das tais zonas onde os militantes das guerrilhas ficarão reunidos recebendo capacitação para a vida civil. Desarmados e agrupados, não serão alvos fáceis? Com a velha desculpa de atuar contra os “grupos criminosos” sempre será possível ações de retaliação, ainda mais com a criação de uma tropa de elite. Tudo é, então, uma grande incógnita e depende de confiança.  
Para os integrantes do grupo de negociação, o acordo firmado em Cuba foi apenas um primeiro passo. Há que monitorar e ver se todas as promessas serão cumpridas. Passados tantos anos de luta armada e violência por parte do estado, talvez agora a vida possa caminhar sem tanta dor. Por outro lado, passarão muitos anos até que a vida institucional, para a qual as organizações terão de se voltar, possa dar algum resultado prático de mudança. O sonho de construção do socialismo pela via das armas, na Colômbia, parece ter findado. Agora, resta saber se será possível pela via da política institucional, num estado tão submetido aos interesses do império estadunidense.

Estamos todos com os olhos presos na Colômbia. Há ainda uma longa estrada a ser não apenas percorrida, mas também construída.