Passeata em Florianópolis - dia 06 de outubro de 2015
Fotos: Rubens Lopes
A mãe de S.M.L tinha um plano para ela. Iria trabalhar numa
repartição pública e casar com um bom rapaz, para lhe dar muitos netos. Tudo
parecia seguir o curso, mas, quando tinha 20 anos S. conheceu um cara. Ele era
músico e, na cidade, um marginal. A mãe jamais o aceitaria. Ela não deixou
passar a oportunidade de viver um amor. Viveu. Só que com esse amor veio uma
gravidez. S. não entendeu bem como, era pouco informada e quando se deu conta
de que a menstruação falhara, entrou em pânico. O namorado não queria casar,
ela não podia ter um filho. A mãe morreria, pensava. Tomou todos os chás que
ensinaram e nada. Não havia jeito. Tinha de abortar.
Vivendo numa pequena cidade não haveria como fazer. Com as
amigas armou tudo. Conseguiu o endereço de uma clínica numa cidade vizinha.
Para lá iria. Conseguiu o dinheiro depois de algum tempo e se foi. Sozinha. Quando
chegou na clínica apavorou-se. Tudo parecia muito sujo. Mas, o medo de decepcionar
a mãe era maior do que tudo. A enfermeira chamou e ela entrou. Uma mesa de
lata, do tipo que se vê em hospital, uma mesinha com instrumentos e um homem já
com a máscara cirúrgica. A mulher, mal-humorada, mandou que tirasse a calça.
Ela tirou. E o que se seguiu àquele momento foi o inferno. Hoje, relembrando,
S. acredita que tudo foi feito sem qualquer cuidado. Ela sentia tudo, a dor
intensa, algo sendo arrancado, o sangue borbulhando e aquele barulho dos
instrumentos. A cara de reprovação da mulher, os olhos do médico. Tudo vem a
mente como num filme de horror.
Quando tudo terminou ela ainda ficou deitada por algumas
horas. As lágrimas vertendo. Pelo que passara, pelo que fizera. O medo, a
culpa, tudo se remexendo dentro do peito. Passado o tempo requerido pelo homem
que fizera o aborto, ela foi mandada embora. Nenhuma receita, nenhuma palavra.
Ela saiu do lugar, cambaleando. Sentia-se fraca. Andou pouco menos de uma
quadra e entregou-se a uma vertigem. Um rapaz que passava a amparou e a levou
para uma farmácia mais adiante. Ela sangrava sem parar. O farmacêutico,
possivelmente experiente naqueles fatos, deu-lhe um remédio e a faz descansar.
"Eu pensei que ia morrer. Estava me esvaindo em sangue. Não sabia o que
fazer e ainda tinha de pegar o ônibus e volta para casa. O fato é que
sobrevivi, mas, hoje, passados já 40 anos, ainda me assalta a culpa e a dor. Eu
me casei, mas não tive filhos. Não me achava digna".
S. teve sorte. Saiu viva da experiência de um aborto
clandestino. Mas, no Brasil, onde
são praticados mais de 800 mil abortos por ano, pelo menos 2.100 (dados oficiais) mulheres morreram nos
últimos 15 anos, por conta de procedimentos como esse, ou outros ainda mais bizarros,
invasivos e violentos. Se considerarmos o número real, que é o das mulheres que
morrem sem que sejam contabilizadas nas estatísticas, a situação ainda fica
mais grave. Conforme o Ministério da Saúde, o aborto é a quinta causa da morte
materna. Logo, isso não é um problema moral. É uma questão de saúde pública.
Não é sem razão que as mulheres lutam para que esse tipo de procedimento seja
feito pelo sistema de saúde, de maneira pública e segura. E qualquer uma que
tenha passado por esse drama sabe que o aborto nunca é uma decisão fácil.
Ninguém vai para um aborto como se fosse a uma festa. É sempre uma dor.
S. estava na passeata que reuniu, em Florianópolis, no dia
06 de novembro, dezenas de pessoas no
grito de "Fora Cunha", numa
alusão ao deputado Eduardo Cunha, autor do Projeto de Lei 5069, que dificulta o
aborto legal para mulheres que tenham sofrido estupro, impedindo o anúncio ou a
prescrição de pílulas do dia seguinte. A lei ainda prevê prisão para quem
induza ou ajude à prática de aborto, e permite que um profissional de saúde se
recuse a dar qualquer medicamento que considere abortivo. Atualmente as vítimas
de estupro, ao declararem o crime, podem fazer o procedimento de maneira
legalizada no sistema de saúde. Com a lei do Cunha, a mulher terá de provar que
foi estuprada com exames de corpo de delito e queixa na polícia. Ora, qualquer
pessoa sabe que um estupro é algo brutal, que deixa uma mulher em choque. Como
exigir de uma pessoa violentada que ela aja com racionalidade cirúrgica visando
comprovar a violência? A lei é, de fato, ela mesma, uma violência contra as
mulheres.
Não é sem razão que esse PL está levantando as mulheres em
luta por todo o país. Primeiro, porque como já se mostrou, o aborto não é uma
questão moral. Ele é vivenciado por milhares de mulheres por causas tão
variadas, que vão desde o medo de magoar a mãe até a completa incapacidade de
proteger e criar uma criança. Cabe à
mulher definir o que fazer com seu corpo. Esse é um direito que ela tem, e
ninguém no mundo deveria julgar alguém por decidir sobre si mesmo. Da mesma
forma, um estupro tampouco pode ser tratado como um problema moral,
culpabilizando as mulheres pela violência. Se uma mulher violada quiser viver
sem o fruto da violência, essa é uma decisão que lhe cabe. Ao estado resta
cuidar e proteger.
A lei proposta por Cunha consegue regredir ainda mais na já
conservadora legislação que existe em relação ao aborto. E é por isso que as mulheres
estão realizando protestos, buscando impedir mais um retrocesso. Em
Florianópolis, S., que é de outra geração, marchou com as garotas e chorou.
"Hoje nós vemos que as mulheres se protegem mais. Naquele tempo em que eu
tive de abortar eu estava sozinha, não só no dia de fazer a coisa, mas na dor.
Não havia com quem repartir. Hoje eu vejo essas meninas aqui, se amparando, lutando
por todas as mulheres, eu me emociono".
A chamada bancada da bíblia, da qual Cunha é o mais
importante representante, tem demonstrado poder, mas, a considerar a força das
ruas, pode ser que a lei acabe arquivada. Nessa semana que começa novos atos
estão planejados por todo o país e as mulheres estão engrossando cada dia mais
as caminhadas e os protestos. Com tambores soando no ritmo do coração, elas
gritam: "Fora Cunha, inimigo das mulheres. O estado é laico. O corpo é
nosso". E esse é um grito que vai crescendo e tomando conta mesmo daquelas
que nunca tiveram coragem de sair numa passeata política. Como Rose, uma
balconista que viu passar a marcha e
ficou com os olhos arregalados, brilhando de alegria. "Eu sei o que
é esse terror que a gente passa quando se vê grávida, sozinha e sem
saída". E foi por saber que ela pegou a bolsa e saiu atrás da caminhada,
somando-se ao coro: "mexeu com as mina, mexeu com satanás".
As mulheres estão na rua, e o que é melhor, não é apenas
pela pílula do dia seguinte. Elas sabem que esse congresso quer muito mais
atraso, nas leis trabalhistas, na ação anti-indígena, no reforço ao agronegócio.
E, por isso, elas vão lutar com unhas e dentes para impedir a retirada de
direitos e o retrocesso.