Alzheimer/Velhice

sábado, 19 de setembro de 2015

Dom José - Imorrível

Hoje marca o dia do encantamento de Dom José Gomes, em 2002. Naquele triste dia escrevi esse texto, de saudade e de amor. Dom José é uma pessoa que está sempre no meu coração. A benção, meu lindo...




Dom José vive para sempre

E eis então que ele se foi. Feito um passarinho.  Na simplicidade, como sempre viveu. Encantou agora. Fico pensando em quantas revoluções não vai provocar lá no céu. Dom José Gomes. José. Um ser único, que tudo o que queria era ver seu povo bem. Um homem sem igual, que entregou seu coração a essa missão nobre que foi a de levar a ideia de Jesus por onde quer que fosse. 

Estava velhinho, 81 anos, e sofria de um mal em que a pessoa vai perdendo a memória. Parecia uma grande ironia isso. Como pode perder a memória aquele que é a memória viva da história do movimento popular em Santa Catarina?  Quando soube, me revoltei com Deus, com a vida, com tudo.  Mas, aí, certa noite, em conversa com as estrelas, tive a resposta. Ele esquecia para que nós lembrássemos. 

O bispo de Chapecó, iluminador de almas, nunca foi de grandes pompas. Era homem de capelinhas improvisadas, de barracos de lona, de casas velhas de madeira, de tendas indígenas, de chão. Foi assim que incendiou o oeste de Santa Catarina. Esteve a frente de todas as lutas envolvendo sem-terra, atingidos das barragens, índios, mulheres camponesas, agricultores. Um profeta. Sabia que viria o dia da libertação, mas não ficou esperando por ele. Arregaçou as mangas e foi construí-lo. 

Nunca vou esquecer de uma manhã, em Florianópolis, numa Romaria da Terra, em que constrangidos, alguns padres o convidavam para ir até a Cúria, compartilhar um almoço com a cúpula da Igreja. E ele, com aqueles olhos imensos, de pura doçura, disse não. “Fico aqui, com meu povo”. Depois, enquanto as autoridades iam para o banquete, ele parou em uma carrocinha de cachorro-quente, comprou um e o comeu, devagar. Em seguida , passou a circular por entre as gentes que almoçavam na grama, dividindo o que haviam trazido. Ele mordiscava um pão, tomava uma água, passava a mão na cabeça de um menino. Caminhante em meio aos seus. Um homem único.

Dom José nunca fez questão de homenagens, de bustos em praça. Só queria que as pessoas lutassem. Essa era sua missão. Queria que sua gente fizesse caminho na dignidade, na partilha, no amor. Foi o que plantou a vida toda. Agora foi embora, deixou a terra, encantou. Nunca mais veremos aquela figura, de óculos imensos e olhos de lâmpada, dizer suas palavras de amor. Agora ele só vai viver em nós, na nossa força, na nossa luta. Vai ser difícil. 
  
Quando ouvi a notícia de que ele havia encantado, o chão se abriu. A primeira coisa que pensei é de que não era justo. Não era hora ainda. Esse homem lindo precisava ver o Brasil dar sua grande virada. Ele precisava ver. Ele é parte disso, construiu isso. Foi fermento, foi causa. Mas, enfim, resta seguir, amparada no seu exemplo de simplicidade e de amor. Não vamos desapontá-lo. Vamos lembrar sempre. Lá em cima, ele se debruçará, sorrindo, e ficará feliz que a gente siga fazendo essas “coisinhas”, que é como ele qualificava a sua luta. Indelével, sua marca fica no coração de cada um que partilhou da sua luz. Morto que nunca morre. Dom José. José. Presente!!!!!

domingo, 13 de setembro de 2015

Um mundo opaco, um grito de dor...



De fato, por aqui, pelo menos por agora, não vivemos uma guerra de verdade, com bombas explodindo casas e gente matando gente sem qualquer razão plausível.  Mas, é certo que nesse nosso mundo estranho, das grandes cidades, temos muitos espaços em que a violência institucional é pão comido, realidade cotidiana, tão cruel quanto a realidade de uma guerra. As balas estouram nas casas e as pessoas morrem como moscas. E, a dita sociedade, de modo geral, vai se acostumando a essas cenas, como se elas se naturalizassem. Assim, de repente, uma chacina num bairro qualquer da grande São Paulo passa a ser só uma notícia na TV. Negros e pobres, "potencialmente marginais", nada de mais.

Então alguém mata um leão e o mundo se comove. Porque, afinal, parece tão selvagem que exista quem cace bichos só por prazer. Aí se produzem campanhas e vertem-se lágrimas. Mas, em alguns dias, tudo passa e já uma outra sensação assoma no mundo do espetáculo.  A vida e sua capacidade de rearticulação.

Na África, fanáticos sequestram meninas e as convertem em escravas sexuais. Na Turquia, estupram e torturam mulheres para que elas aprendam a não se insurgir contra o terror. Na Palestina, soldados armados sequestram e machucam crianças. E tudo vai passando na tela, como um filme B, incompreensível e avassalador. É como se fosse calejando a dor e ela já não mais doesse.

Nos países cobiçados pelos Estados Unidos, guerras vão sendo semeadas, grupos de fanáticos são incentivados e armados. E eles decepam cabeças, afogam pessoas, queimam-nas vivas, usam todos os requintes de crueldade para matar. Mas, tudo bem, são apenas os "loucos" dos árabes. Até que um europeu ou um americano morre e então, venha nova comoção mundial, que também passa em alguns dias.

Agora, a TV nos empurra goela abaixo as dolorosas cenas das famílias em fuga, querendo entrar na Europa,  escapando do terror do oriente.Milhares morrendo afogados, sem que ninguém os queira ajudar. Milhares buscando uma chance de manter vivos os filhos, sendo empurrados de volta para a morte. Não pode entrar. Erguem-se muros e cercas. A Europa branquinha não quer confusão. Pode causar confusão, mas não a quer nos seus quintais.


E então aquela cena, vista até a exaustão, de um menininho morto, na beira do mar, perdido para sempre da chance de seguir em frente. Um a mais, dos tantos milhares que vão ficando pelo caminho na fuga desnorteada. Ah, que mundo opaco, sem maravilhas...


Não, não dá para dormir. Não dá para seguir como se nada fosse. Somos responsáveis também, de alguma forma.  E o que fazer? Como proteger os meninos das favelas brasileiras, as mulheres da Nigéria, as curdas, os haitianos, os sírios, as afegãs, iraquianas, os indígenas brasileiros e equatorianos? Como parar o terror? Como impedir que mais meninos cheguem mortos à praia? Não sei!

Seguimos por aí, travando a luta por um mundo justo, de riquezas repartidas, mas parece tão pouco, e, às vezes, tão inútil. E fica essa dor profunda, martelando, esse medo infinito de ver a humanidade perdida de si mesma. Quantos muros ainda ergueremos? Quando aprenderemos a amar, de verdade, sem medidas? Quando entenderemos que a vida é um presente e todos têm o direito de desfrutar do jardim? Quando destruiremos esse sistema perverso no qual para que um viva outro tenha de morrer? Quando quebraremos as correntes e viveremos em paz?

Não há respostas e essa é uma crônica louca, um grito de dor. Porque não dá para ser diferente! Não tem pé, não tem cabeça, só tem coração.