O terror islâmico
a beleza dos navajos
O jornalista canadense Graeme Wood escreveu há pouco tempo um texto muito bom sobre o Estado Islâmico. Mostra as raízes desse grupo e o contextualiza dentro de um mundo que é quase incompreensível para nós, aqui nessa parte do globo. Vale muito a pena conhecer esse trabalho (http://www.publico.pt/mundo/noticia/o-que-e-o-estado-islamico-1690458), que pode ser lido em português na página do jornal “O Público”.
Lá pelo final do texto ele trabalha uma ideia, que buscou em Orwell, e que me tirou o sono. Diz: “O fascismo é psicologicamente muito mais sólido do que qualquer ideia hedonista da vida... Enquanto o socialismo, e até mesmo o capitalismo, de uma forma mais relutante, tem dito às pessoas ‘dou-te a oportunidade de passares um bom bocado’, Hitler disse às pessoas “vos dou a luta, o perigo e a morte, e em resultado teve uma nação prostrada a seus pés”. Assim, adverte Wood, “não devemos subestimar o encanto que a barbárie possa ter ao nível das emoções. Nem, no caso do EI, o seu encanto religioso ou intelectual”.
Pois, então, o que se esconde nesse pequeno parágrafo? A terrível certeza de que a promessa de beleza que tanto o capitalismo como o socialismo – duas estradas da modernidade europeia – fizeram não se cumpriu, e as pessoas, de alguma forma, não acreditam mais que isso venha a acontecer. Daí essa busca pelo espetaculoso, o perigo, a aventura.
O capitalismo, que promete a vida boa, só conseguiu manter na crista da beleza uma pequena parcela da população. Os que são donos dos meios de produção, os muito ricos, os poderosos. São esses, e são poucos, os que surfam na onda da vida cheia de alegrias e prazeres.
O socialismo, nunca se cumpriu. A vida bonita para os trabalhadores, os explorados, os oprimidos ainda não chegou e as experiências que se dizem socialistas tampouco conseguiram oferecer a beleza para essa parcela majoritária da população.
Nesses tempos de vida de plástico, de mundos virtuais, de corações solitários e mentes vazias, já parece não haver chance para a beleza. Poucos são os que acreditam na possibilidade daquilo que já ensinavam os índios navajos: “beleza em baixo, beleza em cima, beleza pelos lados. Viver é caminhar na beleza”.
O recrutamento de jovens em todo o mundo para atuarem nos grupos fundamentalistas que hoje aterrorizam o oriente médio e parte do continente africano não promete nenhum mundo de belezas. Pelo contrário. O que tem a dar é o ódio, a guerra, a morte. E ainda assim, são centenas os que chegam em busca desse eldorado às avessas.
E nem precisamos ir tão longe. Nas últimas manifestações de rua, de grupos de direita ou mesmo outros que se creem sem ideologia, o chamamento também foi ao terror. Nas faixas e cartazes pedindo a intervenção militar o que está implícito? Justamente o mundo do terror. Que venham as botas, as armas, a tortura, os desaparecimentos, as mortes. E aparentemente essas pessoas estão dispostas a também sujarem as mãos para “corrigir” o mundo, livrando-os dos comunistas, dos gays, dos que não creem em deus.
Não é sem razão que nas comunidades onde já está instalada a intervenção militar, como são as favelas do Rio de Janeiro, o terror seja a hegemônica realidade. Milhares de meninos e meninas que vivem acossados pelas tropas do estado, já não sonham com as belezas do capitalismo que saltam nas telas de TV. Muitos deles são seduzidos pela força que representa aquele mundo do terror. Por isso se armam e desfilam suas pistolas e fuzis pela comunidade, sem nada esperar além da fruição do momento de poder.
Tanto nas montanhas do Iraque como nas periferias das grandes cidades do mundo, há uma juventude sem expectativa. Apenas vivendo a emoção do presente precioso. Um presente de força, de poder de vida e morte sobre o outro, em nome de um deus ou em nome de nada.
O mundo capitalista inaugurado há pouco mais de 300 anos prometeu e não cumpriu. A beleza perdeu seu valor, sumiu num horizonte já não vislumbrado. As cidades desumanizaram as vidas, as periferias são espaços de dor. Poucos são os que conseguem transcender ao caos da realidade cotidiana. O drama do outro passa a ser só mais uma foto para postar no facebook, cuja sensação logo desaparece assim que outro fato, mais bárbaro tome seu lugar.
Essa semana, soldados agrediram de tal forma um travesti, que seus rosto ficou transfigurado. E ainda foi fotografado, com os seios à mostra, sendo obrigado a declarar que mereceu o corretivo, porque agrediu um policial. Certamente nada vai acontecer com quem cometeu esse crime. Seguirão massacrando as pessoas pelo simples fato de que podem. E os que são submetidos a isso guardarão suas lágrimas enquanto esperam a hora da vingança. Que virá. É o mundo Mad Max. E não poderia ser diferente.
Como encontrar a beleza nesse mundo, então? Até ontem a utopia de um mundo novo, justo e digno, era o que nos fazia caminhar. Mas se essa visão se esboroa, o que sobra?
O debate provocado pelo texto do jornalista canadense tem me tirado o sono. É quase como que a inversão completa de tudo o que sempre acreditei. O terror vencendo a beleza. Será?
Prefiro acreditar que não, que podemos sim re-encontrar o caminho para casa. Porque a beleza é o lar natural do humano. E quando a dúvida me toca com sua mão gelada, volto a um livro abissal, que é “A Caverna”, do Saramago. Sim, ele, o pessimista. Nesse romance, ele fala de um tempo muito parecido com o que temos vivido e nos apresenta uma trupe de pessoas que resolve girar ao contrário. É tão bonito, mas tão bonito, que chega a doer.
Por aqui, vou fazendo minha parte, tão ínfima e quase inútil. Mas não quero desistir da alegria de viver num mundo bom. Sei que para isso há que travar uma luta titânica, muitas vezes feroz. A luta de classes, da qual falou Marx. Os oprimidos quebrando as correntes e comandando suas próprias vidas. A vida de beleza dos navajos. Para isso há que fazer viver a beleza, torná-la real, para que outros a vejam e queiram com ela caminhar. Não sei muito bem como fazer isso, estou tateando. Penso que cabe a cada um de nós, coletivamente, não permitir que o terror seja o desejo das gentes.