Alzheimer/Velhice
▼
sábado, 21 de fevereiro de 2015
O dia em que o filho da UFSC se aposentou
Por Raquel Wandelli
a Moacir Loth
Nas vésperas do Carnaval, enquanto as gavetas das repartições se esvaziavam, ele se aposentou silenciosamente, como o fazem aqueles cuja grandeza está em não se convencerem de sua importância para o mundo. Jubilou-se, depois de 40 anos de jornalismo, 35 de universidade, mais cinco de trabalhador rural, fora a infância carregando trato na roça e vendendo fruta que não conta para o tempo oficial. No balanço de tudo, obedecendo ao tal fator previdenciário, 13 anos de trabalho rural e urbano ainda ficaram sobrando. Desde os seis anos, quando começou a ajudar o avô, o pai e a mãe a sustentar a família, Moacir Loth só conheceu a vida dos que precisam trabalhar e servir. Sorrir e fazer graça sempre, mesmo em missões sérias: o bom humor compensa o tempo de brincar que o trabalho sequestrou.
Escrevo com isenção, embora sob suspeita, a respeito desse companheiro de 28 anos de vida e dois filhos compartilhados. Nem o conhecia pessoalmente quando fui trabalhar como estagiária na Assessoria de Comunicação da UFSC e já ouvia falar sobre o jornalista Moacir Loth. O meio jornalístico e a instituição já eram marcados por sua personalidade ao mesmo tempo irreverente e prestativa, pela ousadia política e pela consistência do seu trabalho. Nada do que se possa escrever sobre o seu currículo pode revelar mais a respeito da singeleza sagaz desse servidor do que o privilégio de conviver com sua existência absolutamente generosa, espirituosa e solidária. Só ela pode falar da forma a um só tempo séria e rigorosa, leve e criativa de lidar com o trabalho. E da participação autoral na formação de uma política de comunicação pública para as universidades que se tornou referência nacional.
Não é fácil reunir os itens da sua biografia, descrevendo com fidelidade a coleção de prêmios que conquistou, ou arrolando as funções sociais que ocupou e que comprovam a atuação profissional marcante no âmbito das instituições universitárias e a participação importante na organização sindical da categoria dos jornalistas. O que lanço aqui é uma plataforma in progress da narrativa de sua vida laboral, aberta a todos que quiserem participar, inserindo informações e principalmente lembranças.
Aos 15, um emprego no Jornal de Santa Catarina como servente de cafezinho levou o mocinho mirrado do trabalho rural para o urbano. Junto com o salário mínimo vieram pesadas obrigações que se acumularam com os deveres de estudante. Para chegar a tempo ao Colégio Pedro Segundo, em Blumenau, pulava da cama às 4 horas. Da escola, seguia direto para o jornal de onde só retornava para casa, em Itoupavazinha, à meia-noite. Um funcionário da família Schlosmann, que atuava como técnico das máquinas de composição, sensibilizou-se com a odisseia do alemãozinho. Temendo que o corpo franzino não suportasse a empreitada diária, sua família adotou-o durante um ano. Com um lar mais próximo do trabalho para dormir e fazer as refeições, conseguiu encurtar essa jornada hercúlea e sobreviver.
- Aos finais de semana eu ia pra casa disputar campeonatos de futebol de várzea.
De tanto o garoto percorrer a redação servindo cafezinho, os colegas mais experientes passaram a solicitar que passasse na sala da rádio escuta e lhes trouxesse as últimas notícias enviadas pelas agências nacionais e internacionais por telex. Do cargo de office-boy para o de repórter e editor do jornal foi um salto de apenas um ano. No caminho da sala do telex até as mesas dos editores, ia lendo aquelas mensagens cifradas e corrigindo-as mentalmente. Daí pra tomar a caneta e conquistar a confiança dos editores com a função de “pentear telex” foi um passo. Nesse percurso do menino de Itoupavazinha, formou-se o rádio escuta, o operador de telefoto e radiofoto, depois o repórter, o redator e finalmente o editor de cidade, geral e Internacional.
Em 1976, ainda com 18 anos, venceu o primeiro lugar em reportagem sobre Acidente do Trabalho, em concurso promovido pelo Ministério do Trabalho. Em 1979, aos 21 anos, aportou num dia de chuva na Rodoviária Rita Maria com um eslaque de reco costurado e uma pequena bolsa de plástico contendo pouco mais do que uma escova de dente, uma cueca e uma camiseta. O projeto era trabalhar na sucursal do Santa e conciliar com a faculdade de Ciências Sociais da UFSC. Estava de carona no fusca do diagramador quando escutou no rádio seu nome na lista dos aprovados do Vestibular. Saltou do ônibus e caminhou ao longo da Beira-mar procurando um lugar para comer um ovo frito com arroz antes de se apresentar na redação.
- Foi o ovo mais caro que comi na minha vida.
Como estudante de graduação, venceu o prêmio da Andifes com uma monografia que resultou na publicação do livro: “Educação, Cidadania e Constituição”. Jornalista Profissionalizado, venceu cerca de 15 prêmios, incluindo o Esso com uma série de reportagens sobre as enchentes e várias edições do Prêmio Fiesc; três vezes o Prêmio Jerônimo Coelho, da Assembleia Legislativa, com uma reportagem especial sobre o desaparecimento do deputado Paulo Wright. Na década de 90, implantou, coordenou e editou o Caderno C do Jornal de Santa Catarina, eleito o melhor suplemento cultural de Santa Catarina pela Associação Catarinense de Escritores. A vida profissional nunca se separou da atuação política e sindical. Agredido pela Polícia Militar na cobertura da Novembrada, foi internado com lesões na região dos rins provocadas chutes e cassetetes. Além de censurar a reportagem, o Jornal de Santa Catarina publicou uma declaração de que a ação da PM havia sido exemplar, mas o jornalista emplacar sua cobertura em vários jornais nacionais, distribuindo-a pela Agência do Estadão.
Perfazendo uma história de combatividade, ajudou a criar a partir de 1979, o Movimento de Oposição Sindical (MOS), que enfrentou corajosamente uma prática de aparelhamento patronal do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina. Eleito cinco vezes membro da Comissão de Ética do Sindicato, elegeu-se também diretor de base da Federação Nacional dos Jornalistas. Foi ainda diretor da Associação Brasileira de Jornalismo Científico e presidente do Fórum dos Assessores da Comunicação da Andifes e membro da Comissão Nacional dos Assessores de Comunicação junto à Fenaj (Conjai).
Em Florianópolis, conheceu o grande amor de sua vida profissional: a UFSC, onde ingressou em 1980. Efetivado cinco anos depois em concurso para jornalista, desempenhou as funções de chefe de reportagem e chefe de redação da Assessoria de Comunicação (atual Agecom), na época dirigida pelo jornalista Laudelino José Sardá. Sua designação para o cargo de assessor-chefe pelo reitor Bruno Schlemper Júnior, em 1988, foi festejada numa inspirada crônica de Beto Stodieck. Colunista de inigualável talento, Beto saudou a nomeação de um funcionário de carreira, humilde e despretensioso, que fugia às indicações partidárias e ao jogo de favores predominante no preenchimento dos cargos públicos.
Nessa época, Moacir implantou na UFSC a Política Pública de Comunicação, resultante de suas pesquisas e monografia de conclusão do curso de Especialização em Comunicação Social Integrada na Fundação Dom Cabral e PUC. Ainda hoje essa experiência serve como documento de base e sustentação teórica para a gestão da área em incontáveis órgãos governamentais. Por esse trabalho em defesa de uma práxis pública de comunicação, pelo Jornal Universitário e pelo conjunto da obra de divulgação dos projetos acadêmicos, a Assessoria de Comunicação da UFSC arrebatou em 1993 o prêmio José Reis de Jornalismo Científico, o mais importante do país nessa seara.
Quem conhece sabe, Moacir nunca trabalhou para os interesses pessoais, mas para os projetos coletivos em prol da instituição. Prova disso é que permaneceu na direção da Agecom durante sucessivas mudanças de reitores e da linha de condução. Participou das gestões de Schlemper Júnior, Rodolfo Pinto da Luz, Diomário Querioz, Lúcio Botelho e Álvaro Prata. Durante esse período, a Agecom produziu aproximadamente 700 jornais universitários e manteve uma presença marcante nos meios de comunicação. Moacir Loth também estruturou o trabalho de comunicação na Editora da UFSC, onde editou o jornal Leitura & Prazer. A repercussão de obras publicadas pela editora em cadernos de cultura de veículos nacionais projetou e consolidou a imagem da instituição nesse campo.
O profissional zeloso com a imagem da instituição nunca se chocou com a ontologia crítica e livre do jornalista, que fez do seu trabalho uma permanente arena de lutas. Trivial, Caiu na Cesta, Direto do Campus e Faz Cócegas, colunas que assinou no jornal universitário, expressaram com mais liberdade o talento para criticar, denunciar e ironizar nas entrelinhas. Mordazes e polêmicas, as colunas se notabilizaram pela sua repercussão, conquistaram leitores fiéis e provocaram reações de um modo inédito na comunicação pública. Provaram que um assessor de comunicação não se separa do jornalista quando serve ao público e não ao poder.
É por tudo isso que a universidade se torna um pouco órfã desse filho tão prestativo, um pouco vazia da singeleza, da humildade, da irreverência, da eficiência, da inocência, e do espírito crítico que estavam sintetizadas na figura emblemática do seu servidor. Juntas essas características constituem uma resistência à desumanização que a burocracia, aliada à tecnocracia e à instrumentalização da coisa pública, produziram no capital humano das nossas universidades.
Aposentadoria é um momento de crise: de risco e de oportunidade de reintegração do tempo da vida ao tempo do trabalho, o que fala da própria reintegração da unidade do ser. Não podemos duvidar que o servidor abraçará o caminho das possibilidades e não podemos desejar outra coisa a não ser que continue contribuindo com seu trabalho voluntário, agora como membro da Comissão da Verdade, constituída em dezembro pelo Conselho Universitário, para analisar os reflexos da Ditadura Militar na UFSC. Por favor, jornalista-servidor, não pare de cuidar da nossa universidade, não deixe que a aposentadoria o divorcie dessa outra família, desse outro lar que é um grande amor da sua vida. Ou talvez a outra seja eu.
- É possível que durante todo esse tempo a universidade tenha sido a minha primeira casa.