Quando o pedreiro Amarildo de Souza, morador de uma favela do Rio de Janeiro, entrou naquele camburão que o levaria para a morte talvez já estivesse ciente de seu destino. Pobre, negro, rebelde, perguntão, impaciente com a dureza da vida, deve ter intuído que tudo se acabaria nas mãos de uma polícia que não tem por princípio a defesa do cidadão. Mas não. Sua morte sob tortura, seu corpo desaparecido, seus olhos graúdos de espanto, semearam um movimento nacional de solidariedade e desejos de justiça. Hoje, na longínqua cidade de Florianópolis, no sul do Brasil, ele é o nome que impulsiona uma luta inédita, de gigantescas proporções, que está colocando em cheque nomes e fortunas até então jamais questionados.
Amarildo de Souza é como foi batizada uma ocupação de terra improdutiva no norte da ilha de Santa Catarina. São 900 hectares de terra vazia, à beira do Rio Ratones, que já foi uma espécie de celeiro da ilha, com plantação de feijão, mandioca, batata e hortaliças. Isso sem contar a generosa produção de peixe, ofertada pelo rio, piscoso demais. Bem próximo a uma badalada praia de alto padrão - Canasvieiras - o acampamento fincou suas primeiras barracas no dia 17 de dezembro de 2013. Eram apenas 60 famílias, premidas pelos altos aluguéis da famosa "ilha da magia", que propagandeia suas belezas por todo o país, mas só aceita moradores "nobres". Aos pobres, o que se oferece é uma passagem de volta para casa. Mas, gente há que vem de longe e exige seu espaço de cidadão da cidade. "Somos todos brasileiros, qualquer lugar é nosso lugar".
Quando chegou o natal de 2013, mais gente já tinha se somado à insólita ocupação. E quando 2014 despontou já eram mais de 700 famílias montando suas tendas, trazendo seus poucos pertences, seus bichos e suas crianças. A ocupação Amarildo abriu um espaço de esperança para centenas de pessoas que não tinham mais como comer e morar ao mesmo tempo.
A reação da cidade foi de espanto. Para quem estava acostumado a paisagem bucólica do caminho para Canasvieiras, aqueles barracos de lona eram uma provocação. Mal sabiam que os verdes campos de mato baixo logo seriam derrubados para um empreendimento milionário de um novo Campo de Golfe. Até então o que se sabia era de que aquela terra toda pertencia a uma empresário local, Artêmio Paludo, que há muito tempo tentara criar ali uma fazenda de camarões, sem sucesso. O negócio faliu e tudo ficou abandonado. Agora, o projeto para a área era esse campo de golfe, espaço de diversão para gente rica, que daria mais dinheiro a quem já tem. Foi com essa conjuntura que a ocupação foi armada. Terra sem cumprir sua função social, diz a Constituição brasileira, é passível de reforma agrária. E, também como diz a lei, uma terra serve à reforma agrária independentemente de estar na área rural ou na cidade. 900 hectares é uma latifúndio, e se não produz, há que se destinar. Assim, as famílias que entraram na área vieram com essa intenção. Morar e plantar, produzir comida. No centro da luta estava a reforma agrária.
Já no mês de janeiro, passado o susto e as festas, a reação da elite florianopolitana se fez notar através de suas bocas alugadas na imprensa. Jornalistas raivosos começaram a algaravia de sempre: são bandidos, são favelados, são ladrões, vão trazer insegurança para o bairro que é nobre, estão quebrando um princípio sagrado de não respeitar a propriedade privada. Na verdade, esses jornalistas estavam defendendo o "sagrado" direito dos ricos proprietários, que agora já se sabia, incluía outros sócios como o Grupo Habitasul e o dono do complexo do Santinho (condomínio de alto luxo). E foi assim que começou a reação aos "favelados" que ousavam se apropriar de terra de gente de bem. Durante semanas, as notícias nos meios massivos e nos pequenos jornais de bairro que são financiados por partidos de direita ou empresários, derramaram todo o seu show de preconceito e desinformação.
Mas, a ocupação Amarildo, sem querer, mexeu num vespeiro bem maior do que se podia imaginar. Na tentativa de expulsar as famílias o então suposto proprietário da área entrou na Justiça exigindo a desocupação. Para isso, a justiça precisou pedir a ele as provas de sua propriedade sobre a terra. Não havia. Depois de muitas semanas ele conseguiu apresentar as escrituras de apenas 9 dos 900 hectares que dizia serem seus. Mais tarde, mesmo esses nove hectares foram colocados sob suspeita, uma vez que a certificação em cartório tinha se dado na época em que ele ocupara o cargo de Secretário de Agricultura do Estado. Isso podia significar grilagem de terra, em função do poder do cargo. A confusão estava armada. Ponto para Amarildo. Sem provas de propriedade, e com os títulos sob suspeição, não houve despejo.
Ainda assim, nos dias em que a Justiça ainda não sabia da grilagem, uma reunião de conciliação entre acampados e o suposto proprietário acertou a saída das famílias nos primeiros dias de abril. Esse acordo agora está sendo considerado sem valor, uma vez que as terras não são do empresário. Por conta disso, novas frentes de luta se abrem e os "amarildos" (como são chamados os ocupantes) disputam nos órgãos competentes o direito de permanecerem na terra e seguirem com o projeto de agrovilas.
Uma reunião histórica
E foi para ouvir a resposta de vários órgãos do Estado sobre essa questão que a Assembleia Legislativa abriu suas portas nesse dia 19 de março, em reunião convocada pela Comissão de Direitos Humanos, com a presença dos deputados Luciane Carminati, Angela Albino e Sargento Soares. Além deles, também vieram representantes da Justiça Agrária, da Secretaria do Patrimônio da União, Ministério Público, Procuradoria Federal e Municipal, Ouvidoria do Incra e Instituto Chico Mendes. Era o momento de saber, oficialmente, a resposta da SPU sobre de quem eram, efetivamente, as terras que estavam servindo de morada a todos os amarildos.
Assim, eles vieram com suas camisetas vermelhas, bandeiras, crianças, faixas, músicas e aquele sorriso na cara de quem acredita estar numa luta justa. Quando bateu cinco horas, pelo menos umas 300 pessoas já estavam em frente a Assembleia. Queriam entrar e ver com os próprios olhos tudo que seria discutido ali. Depois de muita conversa, a casa do povo finalmente decidiu que o povo podia entrar. Mas, como ali estavam os pobres, tiveram de passar pelo constrangimento da revista policial, abrindo suas bolsas, braços e pernas para a passagem do detector de metais. Algo jamais feito quando são empresários ou pessoas brancas e bem vestidas. Tudo, bem, o pessoal aturou mais essa, fazendo piada e levando na flauta. Organizados pela equipe de segurança foram entrando, um a um, e ocupando as cadeiras do auditório Antonieta de Barros. Uma imagem simbólica, já que a professora Antonieta foi a primeira mulher negra a assumir um cargo de deputada. E seu retrato, no alto da porta, sorria para os amarildos, a maioria seus irmãos de cor e de luta. Ali se daria uma batalha histórica. Sem armas. Com canções e palavras de ordem.
Auditório cheio, vieram as falas. Os deputados, reafirmando a ideia de que morar é um direito humano. O jovem juiz agrário, Rafael Santi, que já visitou o acampamento várias vezes, deixou claro que a área em Canasveiras tem todas as características de um imóvel rural, podendo, portanto, se prestar à reforma agrária. Segundo ele, esse é movimento que não tem precedentes em Santa Catarina - uma ocupação rural, na cidade - e, por isso, no início, a justiça ficou confusa sobre como proceder. Mas, agora, não resta dúvida de que essa questão deve ser tratada no âmbito da Justiça Agrária. Em seguida, o ouvidor do Incra, Fernando Souza, também reafirmou a possibilidade de o Incra atuar no acampamento criando um projeto que já existe no âmbito do órgão agrário, que é o Projeto Casulo, justamente o plantio coletivo da terra, como querem as famílias da ocupação Amarildo. A fala mais esperada, da superintendente da SPU, Sílvia de Luca, foi curta e incisiva: as terras são da União. O único entreve para ocupação seria a questão ambiental. Afinal, ali existem mangues e restingas que são de preservação permanente. Mas, o representante do Instituo Chico Mendes, deixou claro que há espaço para ocupação e utilização da área, principalmente se for de uso coletivo.
Ao final do encontro, diante da posição de todos os envolvidos, ficou a certeza de que existem todas as chances de a ocupação garantir o espaço para a vida de todas as famílias que hoje lá estão. A terra é da união, tem espaço para utilização, é passível de desapropriação para a reforma agrária. Ainda existem muitas portas burocráticas a serem abertas, mas quem vê os olhos cheios de eternidade de cada uma daquelas pessoas sabe que toda a espera valerá a pena. Para as bocas alugadas da imprensa fica a lição: antes de sair em defesa esganiçada de um de seus amigos, sempre é bom buscar a informação correta. Se houve alguém que "passou a mão" nas terras públicas, não foram os amarildos. Eles e elas reivindicam hoje um direito humano, de ocupar um espaço de terra para morar e plantar. A propriedade da terra é do Estado e as possibilidades estão dadas. Mas, ainda que fosse uma propriedade privada, também poderia ser questionada. Em várias situação, dentro do estado liberal, a propriedade privada por ser desapropriada, ela não é intocável, como querem fazer crer os pretensos defensores da lei. A própria lei diz que uma área privada pode ser usada para uso coletivo, público, ou desapropriada quando não cumpre sua função social, ou quando mantém gente em trabalho escravo.
Na noite chuvosa desse 19 de março, pode-se ouvir o leve arrastar de chinelos de Mara Dilci Tavares, uma senhora de 74 anos, chamada, carinhosamente, por toda a gente da Amarildo, de "vózinha", que se converteu na figura símbolo da ocupação, por sua força de luta e pelo desejo inarredável de terminar a vida numa casa que pode chamar de sua, e numa comunidade onde uma mulher velha pode viver sozinha, sem nunca estar só. Amparada pelo braço de uma jovenzinha, ela se foi, sorrindo. Com ela, a esperança, dançando, graciosa. E talvez, também Amarildo que, com seu sangue, pavimentou a realidade de todas essas vidas.
Amarildo, vive!