São nove horas da manhã e o dia está nublado. Talvez por isso a estrada que vai até Canasvieiras, no norte da ilha de Santa Catarina, esteja quase vazia. Logo depois do viaduto de Jurerê, entra-se no espaço que há umas três décadas era considerado o “celeiro da ilha”, de farta produção de hortaliças, mandioca e milho. Isso sem contar o peixe que, tirado do piscoso rio Ratones, completava a base da alimentação do ilhéu. Com o passar do tempo e a descoberta do turismo, os nativos foram sendo conquistados com promessas de progresso. Assim, boa parte das terras foi vendida para grandes empreendimentos. A região foi sendo tomada pelas construções e a calma praia de Canasvieiras acabou se tornando uma espécie de pequena Argentina, tamanho o fluxo de turistas daquele país.
Mas, apesar da grande densidade de gente e casas próximo à praia, ainda restam grandes espaços de terra no norte da ilha, principalmente na beira do histórico rio Ratones. Não sem razão. São quilômetros e quilômetros de área agricultável, hoje totalmente improdutiva. Para quem cruza aquele caminho todos os dias, o latifúndio vazio vislumbrado da janela do ônibus aparece quase como uma afronta. Tantos pais e mães de família sem uma casa para morar, e aquela imensidão verde sem serventia social.
Foi esse sentimento que levou cerca de 60 famílias de gente sem teto, sem condições de pagar o alto preço do aluguel praticado na “ilha da magia”, a ocupar uma dessas antigas fazendas. A área tem 600 hectares e abrigava dentro dela apenas 15 cabeças de gado, cujos donos nem são os que se dizem donos da terra. Segundo a organização do movimento, a propriedade do espaço seria de um grupo de pessoas e empresas que pretende fazer ali um campo de golfe. A ocupação que se consolidou no dia 16 de dezembro de 2013, agora já tem 150 famílias alojadas e organizadas. “Todos os dias chega mais gente querendo ficar na ocupação. Pena que não dá para abrigar todo mundo. É que só na ilha há um déficit de 15 mil moradias, Ou seja, são 15 mil famílias cadastradas na prefeitura, esperando, algumas há mais de 20 anos, por uma casa para morar”, diz Rui Fernando, da comissão de organização.
A cidade, desde o final dos anos 80 do século passado, tem recebido um fluxo migratório muito grande, incentivado pela promoção do turismo. Mas, no geral, os governantes acolhem bem apenas os turistas endinheirados, como se pode observar das declarações dos secretários de Estado de Planejamento, Murilo Flores e o de Turismo, Valdir Walendowsky: “Temos que qualificar o turista que chega em Santa Catarina. Ele tem que ter mais dinheiro para gastar mais”. Só que junto com o turista rico, precisa chegar também aquele que vai trabalhar para manter a estrutura. É assim que também aportam na ilha levas de migrantes em busca de trabalho.
A migração
Num país de tantas desigualdades, migrar sempre foi uma constante. Viver no interior do Brasil é sinônimo de falta de oportunidades, principalmente para aqueles que não têm uma formação específica ou não têm terra. Diante da impossibilidade de sobreviver e cuidar da famílias, as pessoas buscam mudar de cidade, indo para onde seja possível trabalhar. Segundo o último censo do IBGE mais de 35% dos brasileiros já não vivem mais nos seus lugares de nascimento. E o motivo da mudança é sempre o mesmo: a necessidade de melhorar a vida. A cidade que mais atrai migrantes ainda é São Paulo, mas, desde há alguns anos, o Estado de Santa Catarina, por ser tão cantado em verso e prosa como a “europa brasileira”, tem sido o destino preferido de uma fatia muito grande.
Foi assim com Maria José dos Santos, 46 anos, que saiu de Palmares, no interior de Alagoas, porque não tinha mais como manter a vida. Nascida no histórico reduto do Quilombo de Zumbi, a vida só lhe reservou pobreza. Sem um pedaço de terra para plantar, o jeito era viver do que desse. Um biscate aqui, uma faxina, uma roupa para lavar. Então, um dia, o filho escutou na televisão que Florianópolis era um lugar de muitas belezas e resolveu arriscar. Juntou os trocados e veio em busca do sonho de viver melhor. Dois meses depois mandou buscar a mãe. Hoje, ele até tem um emprego, mas é quase impossível manter a mãe, a esposa e os filhos tendo de pagar o aluguel, que é alto demais. “A gente estava morando na Serrinha,num barraco, apertado, e o dinheiro ia quase todo no aluguel. Tava difícil dar de comida pra todo mundo”.
Elen Maria Silva também pegou um ônibus em Belém do Pará e arriscou encontrar uma vida melhor em Florianópolis. “Me disseram que aqui era bom, que a cidade vivia de turismo, hotelaria. Eu achei que podia encontrar trabalho já que lá as coisas estavam muito difíceis. Eu vivi 30 anos em Belém e nunca tive uma ocupação de carteira assinada. Aqui em Florianópolis eu tive a minha primeira experiência de ver a carteira assinada. Foi muito bom. Mas, o que me mata é o aluguel. Eu estava morando no Saco Grande e lá eu tinha de pagar 600 reais por mês. Era praticamente o salário todo e eu tenho uma filha pra criar”.
Jacson Gueveda não veio de tão longe, sua cidade natal fica no Oeste de Santa Catarina. Mas, os motivos são os mesmos. Falta de trabalho. “Lá, a gente que não tem terra só consegue trabalho na safra. Fora disso, não há o que fazer”. Morando no bairro José Nitro, num pequeno barraco que consumia mais da metade do salário, ele também sentia falta da velha cultura de tomar um chimarrão na frente de casa, de plantar um hortinha nos fundos. Ali não havia nem pátio, nem calçada. Isso sem contar o medo de ser atingido por uma bala perdida. “Aquilo ali não era vida e a gente tem direito de viver bem”.
Cláudio Barbosa dos Santos é veterano em Florianópolis. Chegou do Rio de Janeiro há 35 anos. Sendo neto de uma família nativa, ele foi morar na casa dos avós, no bairro Serrinha. Mas, agora, com o casamento, teve de buscar vida própria. “É pouco espaço pra muita gente, não deu pra ficar na casa da vó”. Trabalhando como vidraceiro, Claudio tampouco conseguia bancar o aluguel. A “ilha da magia” é ingrata com os mais empobrecidos.
Todas essas pessoas de vidas singulares tem agora uma coisa em comum: o sonho de conquistar um lugar para chamar de seu. Eles dividem a terra e os barracos da ocupação Amarildo de Souza, esperando que, enfim, se cumpra aquilo que a Constituição brasileira define como um direito: moradia digna.
Luta e esperança
A manhã abafada revela uma azáfama intermitente na ocupação. Algumas pessoas cuidam da horta, que já está com alfaces bem grandes e muito tempero verde. Outros seguem ajeitando os barracos de lona que agora servem de casa. Mulheres lavam roupa que colorem os fios entrecruzados do acampamento. Os índios Xokleng que vieram também para a ocupação, tecem seus cestos e criam os artesanatos a serem vendidos na praia, que fica próxima do lugar. “Nós pedimos na prefeitura um espaço para ficar. Essa época de turismo é boa para nossas vendas. Mas, a prefeitura não quer nem saber de nós. Então, viemos pra cá, onde fomos acolhidos”, revela o cacique.
Os barracos, feitos de taquara e lona estão montados como numa pequena vila, em distância simétrica, para que cada família possa proteger e se sentir protegida. Há uma equipe que cuida da segurança, outra da estrutura, de saúde e mobilização. Também foi criada uma ciranda para cuidar das crianças enquanto os pais saem para trabalhar. “Hoje eu saio tranquila, porque sei que aqui tem segurança. Minha filha está bem cuidada”, diz Elen. E assim é. O filho de um é filho de todos.
A proposta da ocupação Amarildo é de criar naquela área uma comuna da terra, uma agro-vila capaz de se auto-sustentar. “A intenção é de que a terra seja comum e que a gente comece a produzir alimentos aqui, como acontecia antes. Plantar comida, alimento orgânico, que sirva para o consumo das famílias e também para a geração de renda”. É por conta dessa proposta de reforma agrária popular que as famílias querem o debate do caso da ocupação na Justiça Agrária e não na Justiça comum. “Nós entendemos que essa terra é um latifúndio improdutivo e por isso queremos que a luta se dê no âmbito do governo federal, já que a lei é clara: toda a terra deve cumprir uma função social. Essa terra aqui não está cumprindo o que manda a legislação. Assim, nós já fizemos denúncia na Ouvidoria Agrária do Estado e o Incra já se posicionou favorável as negociações e deve vistoriar a área”, explica Rui.
Mas, essa não será uma luta fácil. Desde os primeiros dias do ano a Justiça já definiu a reintegração de posse para a Agropecuária Paludo e o Grupo Habitasul, que se intitulam donos da área. A polícia militar já esteve no local notificando as famílias e tem realizado operações de intimidação com o helicóptero. A batalha na Justiça segue. Segundo os moradores da ocupação foram encontrados documentos que comprovam irregularidades nas atas de zoneamento, preparadas para garantir a construção do campo de golfe. “Nós esperamos que a discussão se dê na Justiça Agrária e vamos lutar até o fim para garantir nosso direito de morar”.
“Vagabundos...Vão trabalhar!...”
O debate público sobre a ocupação Amarildo faz aflorar os preconceitos mais toscos e desvela uma cidade racista e discriminadora. “E se fosse o teu terreno, tu ia deixar ocupar?”, pergunta um leitor. Ora, uma ocupação urbana só acontece em áreas improdutivas, que servem à especulação, sem cumprir sua função social. Nenhuma família entraria num terreno que está sendo ocupado como moradia ou como produção. Logo, esse argumento é furado.
Outra fala eivada de preconceito é a de que os ocupantes são marginais. “Essa gente que vá trabalhar”. Bom, não há um morador da comunidade Amarildo de Souza que não trabalhe. Ou têm emprego formal, de carteira assinada, ou estão envolvidos com o trabalho informal, tal como o de pedreiro, eletricista, faxineira, vidraceiro, catador. Ocorre que essa é uma gente empobrecida, frequentemente explorada, que mal consegue garantir comida aos filhos. Daí não poder andar “bonitinha” como querem os reacionários de plantão. “A gente também tem o direito de ter uma casa pra morar. Nós somos trabalhadores, estamos aqui batalhando pelo nosso sustento. E somos nós que construímos essa cidade. A gente faz os prédios, a gente limpa, a gente serve. Não somos vagabundos”.
De fato, se há algo que as famílias acampadas querem é trabalho e teto. Para isso estão dispostas a todos os sacrifícios. Hoje, pouco mais de 20 dias depois da histórica decisão de ocupar o latifúndio urbano, não é sem emoção que as mães olham para os filhos pendurados nos balanços, a brincar, sem medo de enfrentar a violência da periferia. “Por que os pobres não podem morar bem? Por que não podem ter o direito de criar os filhos em segurança?” As famílias que formam a ocupação Amarildo estão dispostas a iniciar uma nova forma de organizar a vida: coletiva, solidária, comum.
O espaço de terra que agora ocupam tem duas opções: servir a meia dúzia de homens ricos, consumindo litros e litros de água do rio Ratones para irrigar um campo de golfe, ou servir de moradia e espaço de produção agrícola de 150 famílias. O que pode ser mais justo? O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein definiu de maneira singela que os limites do pensamento de alguém são os limites do seu mundo. Daí sua frase enigmática: “o mundo dos felizes é diferente do mundo dos infelizes”. Talvez por isso seja quase impossível ao que tem condições de viver bem, que tem um bom emprego, compreender o desespero daquele que não consegue colocar comida na mesa. Mais fácil é etiquetar de marginal, vagabundo, ladrão. Colocar na vítima do sistema a culpa da sua dor. Afinal, se for pensar nos motivos de tanta desigualdade, a pessoa terá de se deparar com a verdade de um sistema que para existir precisa explorar e oprimir uma grande parte das gentes. Então, terá de tomar uma definitiva e radical decisão: de que lado ficar?
No sopro da esperança
Já é quase meio dia quando vou deixando o espaço da ocupação Amarildo. No meio das árvores frondosas e sombreiras, as crianças brincam de balanço, correm, dão sonoras gargalhadas. Vigilante, um trio de mães acompanha a movimentação. Jovens cortam taquaras e arrumam os barracos. Outros tomam chimarrão enquanto fazem o seu turno de ronda e segurança. Há medo da desocupação porque, em tanto tempo, alguns nunca se sentiram tão felizes. “Eu não me sinto numa ocupação. Aqui é minha casa. Eu moro aqui”, diz a paraense que trabalha como camareira.
Um carro passa veloz e joga um artefato para dentro da comunidade. Ouve-se o estrondo. Tudo para. As crianças engolem o riso e correm para o portão. As mulheres assomam nos barracos. Será a polícia? Serão as máquinas? Por enquanto não. A juíza Maria Tereza Costa e Silva, alegando motivos humanitários, suspendeu a liminar de reintegração. É o terrorismo, a semeadura do medo, a intimidação. Ninguém se machuca, mas os corações ficam aos saltos. Passado o susto, todos voltam aos afazeres. Sabem mais que ninguém, que não será fácil. Mas, se têm medo, também têm coragem. O vento sibila entre as árvores, a criançada volta à algaravia. A ocupação Amarildo vai resistir...