Alzheimer/Velhice

sábado, 9 de outubro de 2010

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O homem que é um caminho

9 de outubro de 1969 - morre em La Higera, torna-se imortal...
Imagine aquele homem, de riso largo e olhos penetrantes, sentado em sua cadeira de balanço, charuto entre os dedos e um mate quentinho a lhe aquecer as juntas gastas. Do alto dos seus 80 anos ele ainda olharia de esguelha para alguma mulher bonita e sairia às ruas, nas passeatas, serelepe como um menino. Mas, El Che não chegou lá. Não soube o que é perder a força, os hormônios, sentir o corpo fraquejar. Não perdeu a beleza heróica, não envelheceu. Caiu, executado numa escola pobre, de um longínquo lugar da Bolívia. Seus olhos de lâmpada, que iluminaram a luta mais bonita do século XX, ficaram abertos, mirando os assassinos, numa expressão quase de pena.

Ernesto nasceu na Argentina e viveu sempre no limite. Asmático, venceu cada crise, recusando-se a cenas de auto-piedade. Quando o ar lhe faltava, ele arfava, barulhento, e se escondia para que ninguém o visse lutar contra a doença que tentava impedi-lo de viver à larga. Foi assim que se embrenhou pela América Latina e descobriu que muito mais do que argentino, ele era um revolucionário, prisioneiro das causas do povo. E assim foi até o fim.

El Che é homem sem igual. Não é à toa que vive para sempre. Enfrentou a doença, enfrentou o império, se embrenhou nas selvas e defendeu com seu próprio corpo os sonhos coletivos de uma multidão. E é tão especial que, mesmo morto, consegue levar adiante milhões de almas em rebelião. Seu rosto anguloso de olhar firme é presença segura em qualquer lugar onde haja gente em luta. Sua força revolucionária é tão grande que nem apropriado pela Fórum conseguiu se transformar num pastiche. A cara do Che nas camisetas da famosa marca não podiam mesmo encantar a classe que compra roupas caras. Essa gente não o conhece, não sabe do seu valor. Assim, não vingou.

O Che vive mesmo é nas camisetas de malha ruim, produzidas nos fundos de quintal, em fabriquetas de serigrafia, que se vendem nos encontros populares. Porque essa gente é a sua gente. Os empobrecidos, os desvalidos, os oprimidos, os marginais, os que dizem não, os que sonham, os que transformam, os que anunciam boas novas, os que fazem rebeliões, os profetas.

O Che vive porque não é mais um homem, é um caminho, vereda de liberdade, de vida digna, de riquezas repartidas. O Che e seu olhar de infinito está sempre ali, a dizer: sim, é possível. Vamos em frente, em luta. Esse homem de junho, esse homem outonal, essa chama. É sua voz de trovão que nos convida a acreditar que as lutas coletivas sempre serão as armas mais seguras para chegar a uma nova organização da vida. O Che de Rosário, de Alta Gracia, de Córdoba, da Bolívia, da Venezuela, do Peru, do Equador, da Guatemala, de Cuba… O Che do mundo… Ele nos acena, invencível, e nós o seguimos… Porque assim como ele, vive, eterna, a esperança deste ainda-não almejado. Nós o faremos… Eu sei!

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Um pitaco sobre as eleições

As eleições no Brasil se revestiram de um manto moral. Quase ninguém discutiu os projetos de nação que apresentavam as candidaturas. O que importava mais era atuar na destruição da pessoa, no que ela tinha de “sujo e condenável”. Assim, a história de Dilma Roussef, uma mulher valente que entregou sua juventude para lutar contra a ditadura sanguinária que se instalou no país em 1964, no projeto de dominação perpetrado pelos Estados Unidos para evitar o “comunismo”, acabou se transformando em inomináveis absurdos. Pelas redes sociais, pelos correios eletrônicos, e na mídia comercial circularam informações das mais esdrúxulas. Que Dilma era assassina, terrorista, e pasmem, que havia dito que nem Jesus Cristo tirava a vitória dela. Cabia atacar a candidata do Lula, pois era a mais forte e se configurava a favorita. O fato de ela ter sido uma lutadora contra a ditadura, ter sido presa, torturada, ter se constituído uma profissional competente num mundo masculino, ter sido ministra numa pasta nunca antes ocupada por uma mulher, e tudo mais, não foi saudado. Nem pelas militantes do “gênero”.

Mesmos para aqueles que, como eu, sempre fizeram a crítica sistemática ao governo Lula, pelas coisas que deixou de fazer e pelas que fez dentro do recorte neoliberal, ler os correios que chegavam aos borbotões causava engulhos. Porque a crítica ao governo Lula precisa ser feita desde a esquerda, como forma de apontar os erros e de alavancar mudanças. Jamais poderíamos compactuar com as atrocidades ditas pela direita raivosa, pela igreja conservadora e pelas marionetes. Quando o argumento crítico é político, vamos discutir, mas atuar na lógica dos ataques pessoais, e além de tudo mentirosos, é voltar ao triste episódio dos anos 60, quando os católicos foram às ruas na Marcha da Família dizendo se defender do tremendo “mal” do comunismo, que comia criancinhas e roubava a propriedade privada. Os tempos atuais não poderiam conter esse viés reacionário e pouco inteligente. Hoje temos muito mais acesso a informações para que se possa cair neste velho conto. Mas, ainda assim, patrocinado pelos Estados Unidos, o inimigo que assoma - e ao qual se acusam todos os lutadores - é o de “terrorista”. Bastou gritar contra o preço do cafezinho e a pessoa já pode ser apontada como um.

A própria Marina Silva, que ao longo da campanha não deixou explícito que projeto de país defendia, embora durante sua trajetória como ministra e depois como candidata tenha realizado alianças claríssimas com o chamado “ecocapitalismo”, foi atacada no pessoal. A direita não a acusava de ter se aliado aos grandes empresários do agronegócio ou do chamado “desenvolvimento sustentável”, muito menos de ter compactuado com a liberação dos transgênicos ou com o roubo do conhecimento ancestral dos indígenas. Não, isso, na visão dos dominantes, foi coisa boa e não poderia ser criticado. A crítica a ela também era pessoal. Ela era a feia, a esfomeada, e outros adjetivos abjetos. Seu projeto de ligação visceral com o capitalismo dito responsável ficou obscurecido e os ambientalistas do capital a seguiram alegremente, como se fosse possível ser “sustentável” no capitalismo. O fraco discurso de salvar as florestas e os animais sem apresentar proposta de transformação para a vida humana na consolidação de uma proposta socialista acabou sem crítica e o resultado foram os milhões de votos.

Plínio de Arruda Sampaio, apesar de sua estatura intelectual, tampouco ficou de fora da mira do moralismo barato que invadiu a campanha eleitoral. O homem era inteligente, simpático, mas “muito velho”, iria morrer logo, então, melhor evitar o voto em alguém assim condenado. Nas campanhas anônimas que encheram caixas de correio e viajaram no boca-a-boca apenas Serra era a opção. Os motivos? Ora, os motivos eram claros: a Dilma era terrorista, a Marina, esfomeada, o Plínio, velho, o Zé Maria, louco, os demais eram ninguém, então só sobrava o paulistano, amigo do FHC, que tanto fez pelo Brasil. Para que melhor argumento? A morte da política.

É certo que o governo de Luis Inácio tem parte da culpa desta despolitização total da população. Mesmo na propaganda da Dilma, os argumentos para se votar na ex-ministra, acabavam sendo morais, de forte apelo emocional. Em um deles a canção chega a dizer que Lula entregava seu povo nas mãos dela, como se a população fosse um saco de batatas sem voz ou desejos. Enfim, o resultado foi o espelho da proposta de campanha que praticamente todos os candidatos empreenderam.

Figuras histriônicas como o Tiririca, Romário, e outros sem qualquer proposta concreta para o país, foram eleitos e causa surpresa a indignação que toma conta da mídia. Como se não fosse também responsabilidade dos formadores de opinião midiáticos esta completa falta de credibilidade que toma conta da população com relação ao Congresso Nacional. Não é de hoje que factóides denunciatórios tomam conta das telinhas da televisão, mostrando os políticos de Brasília como ladrões que levam dinheiro em cueca, num achincalhe pessoal, sem que a crítica se espraie para o terreno da política mesma.

O julgamento dos deputados corruptos é sempre moral. As atrocidades políticas que eles comentem contra o país e sua gente não são tratadas com a mesma “fome”. O que dizem os meios sobre as votações da bancada ruralista em prol do agronegócio? O que dizem sobre a aprovação de obras predadoras como a construção indiscriminada de barragens? E o Código Ambiental? Nada. Só que as pessoas não são idiotas e sabem que as casas legislativas não representam a vontade popular. Votar no Tiririca parece muito mais racional, não é, “peixe”?, como diria o Romário. O achincalhe é o protesto da consciência ingênua, daqueles que sabem que algo está errado no “reino de Brasília”, embora possam não saber bem o quê.

Agora vem o segundo turno. É a disputa plebiscitária. Serra contra Dilma. O eleitor inteligente haverá de buscar as informações reais. Serra é cria de FHC, que ficou no comando do país por oito anos, tal qual Lula, de quem Dilma é cria. O que fez o Fernando Henrique pelo país e pela população nos oito anos que lhe couberam? Qual era seu projeto de país, quem foram seus aliados? E o Lula, o que fez? Que projeto tornou real ao longo do seu mandato?

FHC foi a locomotiva do projeto neoliberal. Durante seu governo, os trabalhadores foram arrochados ao máximo, perderam dezenas de direitos, empresas públicas foram privatizadas em verdadeiros crimes de lesa pátria, o patrimônio da nação foi dilapidado. Sua idéia era a de estado mínimo para os pobres e estado total para os ricos. Representava a elite selvagem, capaz de saquear o próprio país sem qualquer abalo moral. Na sua testa poder-se-ia pregar o nome “bussines” (negócio, em inglês), sem medo de errar. Basta pesquisar as mobilizações populares no governo de FHC para se perceber os golpes dados contra o país.

O governo Lula assomou em 2003 com a promessa de mudança. Ao longo dos tempos foi fazendo composições e concessões com a elite produtiva do país. No seu governo os ricos ganharam muito, mas, na linha da social democracia, ele também trabalhou na outra ponta. O Bolsa família levou comida a milhões de famílias, criou vagas nas universidades, criou 14 novas universidades públicas, melhorou o salário mínimo, alavancou a vida da classe média, abriu crédito, praticou uma política externa de aproximação com a América Latina, coisa nunca feita antes. Claro que o governo Lula não significou qualquer avanço no projeto socialista. E ele nunca se propôs a isso. Talvez por isso tenha se tornado palatável a parte da elite local. As críticas feitas a todos estes projetos citados acima sempre foram contundentes. O bolsa família ainda não avançou para um processo de libertação, as universidades novas ainda carecem de qualidade, as vagas universitárias foram para a privadas, e toda uma sorte de outros pontos que poderíamos citar, e já o fizemos em vários outros artigos. Mas, mesmo dentro da lógica do capital, o governo Lula foi melhor que o de FHC.

Assim, se o processo que inicia agora rumo ao segundo turno é um plebiscito sobre propostas de governo, é preciso clareza. Serra representa o atraso, o conservadorismo, a elite insaciável e entreguista, capaz de qualquer coisa para sangrar as riquezas nacionais em benefício próprio e incapaz de conceder um mínimo que seja à população. Dilma representa o chamado “capitalismo humanizado”, que concede à elite, mas busca atender aos de baixo, em políticas assistenciais, programas sociais e políticas públicas. Dilma não é socialismo e muito menos a ameaça comunista, pode chegar a social democracia, garantindo privilégios, mas distribuindo melhor a riqueza. Já o Serra não é social democrata, apesar de isso estar no nome do seu partido. Ele é o vampiro das elites.

Ao povo, que no geral sabe muito bem das ínfimas diferenças que existem entre os candidatos, valeria uma reflexão. Estudar as ações de cada grupo em vez de dar voz a argumentações morais e pessoais que só reduzem a vida política ao ridículo. A eleição, enfim, não é “a mãe de todas as batalhas”, mas, nessa conjuntura, ela pode definir o futuro. A grande política pressupõe análise da realidade e propostas de superação. O socialismo pressupõe mais trabalho entre as gentes. Há que se voltar ao trabalho de base, coisa praticamente esquecida pelos partidos políticos que, na sua maioria, entraram na lógica do institucional. Há que voltar às ruas, aos bairros, às estradas barrentas da vida real, para construir desde baixo o sonho da sociedade justa, igualitária, fraterna e cooperativa.

Enquanto isso não acontece, não se pode retroceder. Sem volta atrás...

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Equador: voltar na história para entender o presente

Rebeliões no Equador não são coisas difíceis de acontecer. Lá, a população, historicamente se levanta quando as coisas não andam conforme quer. Desde antes das guerras de independência, sublevações e lutas populares eram bem comuns e mesmo depois, já república, o país seguiu vivendo ondas tumultuosas. Passou por ditaduras e alternou entre golpes, contragolpes, governos conservadores e liberais, e o povo volta e meia assoma em rebelião.

Pouco depois da independência muitas foram as guerra travadas por conta dos limites do país. Houve conflitos com o Peru, Colômbia e Brasil e em todos eles o Equador perdeu parte das suas terras, firmando tratados que a população rechaçou, também realizando grandes protestos. Estas instabilidades fizeram com que os governos fossem curtos, tumultuados e proporcionassem a uma elite dominante o controle da vida econômica. Durante mais de uma década pós-independência prevaleceu a hegemonia conservadora e um Estado que quase se poderia chamar teocrático, tal a imbricação com a igreja católica. Os liberais só conseguiram chegar ao poder em 1895 depois de inúmeras lutas e rebeliões. E, apesar de terem se libertado do jugo católico e modernizado o país, os liberais também se fizeram ricos e saquearam o país. Ao povo, indignado, só cabiam as revoltas.

Os anos 20 do século XX foram tempos de ascensão da luta dos trabalhadores e estudantes. Com a participação de comunistas e socialistas se organizaram sindicatos e as lutas recrudesceram. Conforme conta o historiador James Cockcroft, em 1922, nos conflitos de rua, os estudantes chegavam a desarmar os soldados nos conflitos que se faziam diários. Essas rebeliões levaram a matanças e assassinatos que foram deixando marcas na lembrança popular. Em 1925, houve um golpe de estado, de corte socialista, que ficou conhecido como a “reforma Juliana”, levado a cabo por jovens oficiais do exército atraídos pelas idéias progressistas. A crise dos anos 30 desencadeou novos protestos de rua e voltaram os liberais a governar o país, trazendo com eles a oligarquia predadora, a igreja e o fascismo. Em 1933 o povo elege José María Velasco Ibarra que fazia um discurso popular, prometendo acabar com a pobreza.

Velasco tem uma história única no Equador. Nacionalista e determinado a mudar o destino do país que até então era uma grande fazenda, ele foi eleito cinco vezes, em 33, 44, 52, 60 e 68. Apenas no mandato de 52 conseguiu terminar seu governo. Todos os demais foram marcados por golpes e, consequentemente, por massivas lutas populares, rebeliões e insurreições, ora de apoio, ora contra. As revoltas populares são elementos recorrentes na história do Equador. É uma característica do povo equatoriano, que acredita piamente nas promessas dos governantes, mas quando não as vê cumpridas, não hesita em partir para a luta, derrubando os mesmos que ajudou a colocar no poder.

Nos anos 60, sob a presidência de Velasco, o mesmo decidiu aproximar-se da experiência revolucionária que nascia em Cuba, assim como também de Moscou. É aí que a Central de Inteligência Americana (CIA) entra em campo para cortar de vez as tendências esquerdistas de Velasco. Os Estados Unidos iniciavam com mais força as intervenções na América Latina. E, como em 1961 houve uma grande crise no ramo bananeiro, afetando bastante o Equador, Velasco teve de tomar medidas impopulares como o aumento de impostos. Por conta disso vieram grandes greves de trabalhadores e os EUA viram aí uma boa oportunidade de envolver o exército num novo golpe de estado, retirando a ameaça “comunista”. Os milicos atacaram e Velasco mais uma vez fugiu do país. Foi um tempo de novos massacres, prisões de dirigentes, torturas e todo o “kit básico” que os demais países da América Latina iriam conhecer com os golpes que se sucederam.

Foram as greves, as lutas e as rebeliões populares que, em 1968 trouxeram Velasco de volta. E, de novo, foi seu corte progressista que selou novo golpe de estado. Por conta de ter recebido Fidel Castro e ter prendido pescadores estadunidenses que faziam pesca ilegal dentro das águas equatorianas, Velasco ficou na mira do império. Também, por aqueles dias, os EUA já sabiam que as terras do Equador eram um celeiro de petróleo e havia que tirar essa riqueza das mãos de um nacionalista com tendências a fazer “maus amigos”. Assim, o mandato de Velasco não acaba. Vem um novo golpe militar.

O general Rodríguez Lara assume o comando do governo e passa a desenvolver uma série de ações nacionalistas prometendo ao povo usar o dinheiro do petróleo para desenvolver o país. Isso aconteceu por um tempo, até 1973, quando houve o boicote ao petróleo árabe e a quebra da OPEP. Como o governo de Lara tinha uma inclinação progressista e nacionalista, a direita equatoriana começou a planejar novo golpe e, com a ajuda dos Estados Unidos, isso acontece em 1976, sempre com fortes levantamentos populares de protesto. A partir daí quem passou a comandar a política econômica equatoriana foi o Fundo Monetário Internacional. Todo esse processo foi marcado por greves e movimentações populares. Abriu caminho também para a organização mais sistemática dos camponeses que realizaram congressos nacionais e, em 1980, criaram a Federação Nacional de Organizações Camponesas (FENOC). O tempo era de efervescência nas lutas populares e também os povos originários encontram os caminhos da organização através da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador, a CONAIE.

Estas organizações e outras agrupações trabalhistas lograram realizar uma frente ampla e em 1979 saíram das trevas dos governos militares para um governo civil outra vez. Foi a primeira nação latino-americana a fazer isso no período em que as ditaduras militares foram hegemônicas na região. O eleito foi Roldós Aguilera, então com 38 anos, o presidente mais jovem que a América Latina já tivera. Mas, também seu governo não conseguiu avançar. Aguilera morre em 1981 num acidente e o seu vice Osvaldo Hurtado segue uma política conservadora que faz com que os trabalhadores, camponeses e indígenas se levantem em novas rebeliões que colocaram o país em estado de emergência até que chegassem as eleições de 1984, que colocou no poder um ultraconservador, León Febres Cordero. A sina do povo equatoriano parecia não ter mais fim. Ao longo de toda a sua história, as mobilizações e lutas populares sempre foram gigantescas, mas raramente estas forças conseguiram construir um projeto de país de forma conjunta. Mesmo a criação de uma frente armada revolucionária chamada de “Alfaro Vive, Carajo!” (uma homenagem ao ex-presidente liberal Eloy Alfaro), que perdurou por toda a década de 80, não logrou aglutinar a população numa proposta concreta de poder.

Com Febres Cordero o FMI nadou de braçada, os latifundiários ganharam rios de dinheiro e a igreja voltou ao poder. Por conta disso aconteceram massivas greves gerais em 86 e 87, com a sempre renovada violência militar contra os manifestantes, gerando saldos enormes de mortos, feridos, presos e desaparecidos.

Em 1989 o povo elege novo presidente, Rodrigo Borja, de centro esquerda. Ele reformou as leis trabalhistas gerando novas ondas de protestos entre os trabalhadores. Também são importantíssimos os levantamentos indígenas que começam em 1990, quando a CONAIE chegou a fazer reféns militares. Depois, em 1991 os indígenas ocuparam o Congresso Nacional em luta por terra e autonomia. Foram batalhas gigantescas e envolveram boa parte da população. Apesar disso, as políticas neoliberais faziam galope pela América Latina e o Equador não ficou imune. Em 1992, com a ascensão de Duran Ballén à presidência, a direita retorna com força apostando em idéias “modernizantes”, que nada mais eram do que as mesmas velhas receitas do FMI e Banco Mundial, arruinando as empresas estatais e apostando na especulação financeira. Também neste governo houve grandes lutas indígenas por conta da Lei Agrária.

O ano de 1996 chega e que vence as eleições presidenciais é Abdalá Bucaram, com o também mesmo velho discursos de dar poder aos “descamisados” dando vazão ao que o economista René Báez chama de “democracia obscena”. Carente de um projeto nacional, democrático e popular, Abdalá se transforma num espetáculo grotesco, cheio de medidas moralistas, como por exemplo prender roqueiros e lutadores de Box. Ele chegou a receber no país a estadunidense Lorena Bobbit (a que castrou o marido) e com ela foi padrinho de batismo do filho de uma popular cantora do Equador. Suas extravagâncias eram tantas que foi apelidado de El Loco. A política econômica ortodoxa seguia o diapasão do ajustes do FMI e mais uma vez as massas saíram às ruas, com protestos, rebeliões e as sempre tradicionais prisões. Indígenas, funcionários públicos, professores universitários sofreram na pele as violência do Estado. E foi Bucaram quem teve a idéia de chamar para o Equador o mesmo tecnocrata que já havia destruído a Argentina: Domingos Cavallo, para igualmente criar um plano que viria arrochar ainda mais a população. Vem daí a idéia de dolarização da economia, a transformar o Equador num grande bazar sem riqueza própria.

Durante o governo de Bucaram não foram poucas as intifadas estudantis e muitos os protestos dos movimentos sociais, a ponto de novamente tentarem uma unidade na Frente Patriótica de Defesa do Povo, chamando uma greve geral para fevereiro de 1997, coisa que acabou se transformando numa nova rebelião. O movimento foi tão forte que provocou a derrubada de Abdalá Bucaram. O Congresso empossa o seu presidente, Fabian Alarcón, como presidente do Equador. De novo, o povo derruba um presidente, mas não encontra forças e articulação suficiente para assumir o mando. Novamente as gentes caem no conto daqueles que fazem promessas e não as cumprem. Tanto que o novo presidente logo foi render homenagens aos patriarcas da direita e seguiu governando dentro das linhas do neoliberalismo, tal e qual o que havia sido deposto. A roda política seguiu sua gira sem fim, com o povo voltando às ruas em novas jornadas cívicas. Durante esse governo é escrita uma nova Constituição que, com maioria direitista, não avança no rumo das lutas sociais reivindicadas nas ruas.

Em 1998 as novas eleições no Equador acontecem num clima de completo descrédito. O país está esgotado. As greves são freqüentes, a pobreza é gigante e ainda há uma parte do país alagada pelas enchentes. A campanha foi baseada na mesma política paternalista de sempre, prometendo acabar com a miséria das gentes. O vencedor foi um jovem graduado em Harward, Jamil Mahuad. Nenhuma novidade sob o sol. Ajustes neoliberais, privatizações, novos acordos com o FMI e a cessão da base de Manta aos Estados Unidos. Em 1999 o país viveu um crack financeiro, que quebrou empresas, bancos e jogou os movimentos sociais nas ruas outra vez. O governo congelou as contas bancárias e aumentou os preços de quase tudo. Por todo o país as gentes se manifestavam paralisando as estradas, realizando greves gerais, enquanto as forças públicas protagonizavam a “balaceira”. Por meses os trabalhadores seguiram lutando exigindo que o governo tomasse uma decisão pelo povo equatoriano, o que acabou por garantir a moratória da dívida externa. No ano 2000, ainda acossado por massivos movimentos, com os indígenas praticamente tomando a capital, Mahuad anuncia a dolarização da economia e o fim do sucre (moeda nacional). É o que basta para que nova rebelião popular aconteça, com a parceria de parte das forças armadas que interveio e depôs o presidente neoliberal na chamada “revolução do arco-íris”. A frágil aliança entre os movimentos populares e as forças armadas, configuradas na Junta de Salvação Nacional, não consegue se sustentar por muito tempo. A oligarquia, temendo que a “chusma indígena” chegasse ao poder, espalhou os seus tentáculos e tomou as rédeas da política.

E foi essa reação da velha direita, articulada com os Estados Unidos (chegou a ameaçar de embargo caso a junta administrasse o país) que fez com que a transição fosse encabeçada por Gustavo Noboa Bejarano, uma espécie de católico fundamentalista que tão logo assumiu o cargo, respaldou as medidas tomadas pelo presidente deposto e seguiu com a política neoliberal, buscando mais empréstimos junto ao FMI. Assim, no ano de 2001 novos protestos começaram a ganhar vulto e os indígenas, que haviam alavancado a deposição de Mahuad, anunciavam novas tomas de cidades, inclusive a capital. A eles se juntaram os estudantes, camponeses e trabalhadores em dezenas de pequenos motins que culminaram na “rebelião dos comuneros", que durou 10 dias, com brutal repressão e acabou com o governo capitulando e negociando. E, assim, mais uma vez, a gente rebelada voltou para suas casas acreditando nas promessas dos governantes. Ainda assim, as intenções estadunidenses de implementar a Área de Livre Comércio, fizeram com que os movimentos sociais voltassem às ruas no ano de 2002, com manifestações massivas.

Desde a aliança com os oficiais do exército no ano 2000, a figura de um jovem coronel, de origem indígena, assomou com bastante força. Era Lúcio Gutiérrez. Ele participou da queda de Mahuad e teve atuação contundente na rebelião dos comuneros assim como nas lutas anti-Alca. Assim, foi quase natural que a sua candidatura, com forte conteúdo nacionalista, tivesse o apoio do movimento indígena e da esquerda em geral. Gutierrez representava tudo aquilo que a direta equatoriana vinha evitando pelos anos a fio. Um mestiço, comunista, lulista, chavista, populista, nacionalista e todos os adjetivos “assustadores” que tornaram a campanha quase que uma guerra do bem contra o mal. A vitória de Lúcio Gutiérrez em 2002 foi um genuíno sucesso popular.

Mas, dias depois lá estava ele aceitando as políticas do FMI, do Banco Mundial, levando gente ligada aos monopólios bancários para seu grupo dirigente e a esperança começou a afundar. “A Frente Popular e Anti-imperialista articulada antes das eleições nem chegou a nascer”, observa René Báez no seu livro A Anti-história equatoriana. Gutiérrez recebeu missões estadunidenses e foi beijar a mão do líder direitista Febres Cordero em Guayaquil. Foi o que bastou para que os movimentos que o haviam apoiado passarem ao outro lado. Cinco meses depois de assumir, já havia luta nas ruas. A CONAIE chamou uma conferência das nacionalidades e apontava caminhos para novas rebeliões, caso Gutiérrez não voltasse ao plano traçado antes de ser eleito. Os gritos de “traidor” já se faziam ouvir entre petroleiros, estudantes, professores, que promoviam greves. Logo em seguida veio a greve de fome dos aposentados que acabou com mais de 10 mortos e, por fim a “rebelião dos foragidos”, que se fez ouvir em todo o planeta com o seu grito de “fora todos”. Em abril de 2005 a revolta popular foi tão grande que Lúcio teve de fugir, refugiando-se na embaixada brasileira. Era o fim de mais um governo e, mais uma vez, as forças rebeldes não lograram sustentar um projeto de país e de poder. Assim, quem assume é o vice-presidente Alfredo Palácio e nada acaba mudando de verdade.

É nesse contexto que aparece Rafael Correa. Crítico da dolarização e das reformas neoliberais ele é escolhido para ministro da economia desenhando o que ficou conhecido como o Plano Correa. De matiz keynesiana e cepalina, o plano aponta para a defesa da riqueza petroleira, incentivos ao aparato produtivo e a busca de um Estado social. Todas estas medidas são eco das tremendas lutas travadas nas ruas pela população rebelada e, por isso mesmo, o ministro não esquenta por muito tempo o cargo. Por outro lado, as ruas também começam a se manifestar, na medida em que o regime de Palacios volta a tender para direita. Da mesma forma, o movimento indígena, comandado pela CONAIE retoma com mais força a luta pelo Estado Plurinacional.

As eleições de 2006 foram absolutamente dicotômicas. Monroísmo/neoliberal com o magnata Álvaro Noboa, versus o nacionalismo/bolivariano, com Rafael Correa. E não restaram dúvidas. Desde o abril de 2005 que as forças populares vinham impulsionando uma série de avanços, mesmo com um governo entreguista. Agora, o jovem economista que havia esboçado o Plano Correa tinha chances de fazer acontecer as suas propostas de revolução cidadã. Mais uma vez as gentes equatorianas acreditaram na possibilidade da mudança e Rafael teve uma vitória estrondosa. Aliado a Chávez e Evo Morales, Correa deu início às mudanças, com a chamada de uma constituinte. Tudo parecia seguir seu rumo de transformação.

Os caminhos de Correa

Mas, com o passar do tempo as coisas voltaram a ficar tensas entre o poder e as ruas. Terminada a nova Constituição, que, de fato, trouxe propostas revolucionárias – como os direitos da natureza – a construção das leis regulamentadoras passaram a provocar novos conflitos. A política petroleira se equilibra entre as idéias de nacionalismo e a subserviência aos interesses das transnacionais, como por exemplo, a Petrobras. De igual maneira a política para a área mineira já levantou os povos originários em várias manifestações, algumas delas bastante expressivas. Os indígenas são radicalmente contra a lei que, concretamente abre as portas para a mineração sem levar em conta os estragos profundos no meio ambiente e nas terras comunais. Neste momento em que o governo viveu o drama da rebelião dos policias, os indígenas estão realizando uma série de protestos no país discutindo as leis das águas, da mineração e da reforma agrária. E esta é uma parcela da população que não pode ser desprezada, visto que já protagonizou rebeliões célebres e vitoriosas.

A nova lei do serviço público, aprovada recentemente, é um calo na vida dos trabalhadores. Ela mexe na aposentadoria, nos salários e já provocou inúmeros protestos ao longo dos últimos anos, enquanto estava em discussão no Congresso. Parte da esquerda insiste que o governo está arrochando os trabalhadores, que tira direitos e aplica a velha receita neoliberal de “ajuste”. Já outros grupos, também nominados de esquerda, insistem que o Equador precisa se rever, atuar sobre novas bases e que estas mudanças são necessárias. Outra lei que tem provocado manifestações gigantescas dos professores e estudantes é a lei da educação, igualmente apontada como neoliberal.

Mas, no meio de toda esta batalha de idéias e propostas travadas com os movimentos sociais e a esquerda também está aninhada a velha direita, a oligarquia, a mesma elite promotora de golpes e contragolpes ao longo destes anos. Esta gente não está parada esperando os acontecimentos. Está agindo e muito bem orientada pelos seus velhos “patrões”. São conhecidos os passos dados pelo ex-presidente Lúcio Gutiérrez, assim como as tramóias dos embaixadores estadunidenses. É por isso que os acontecimentos de 30 de setembro precisam ser analisados com todos os elementos na mesa. É fato que os movimentos estão em luta, é fato que a lei do serviço público traz prejuízos aos trabalhadores, é fato que o levantamento dos policiais estava dentro deste contexto. Mas não dá para ser ingênuo a ponto de não reconhecer que as forças reacionárias seguem agindo, se infiltrando e minando as forças armadas. Porque, afinal, como lembra Heinz Dieterich, são elas, em última instância que determinam o rumo da prosa.

O governo de Rafael Correa passou por uma prova de fogo. Nada que seja desconhecido no Equador. Quando um governante não cumpre o que promete, o povo trata de arrancá-lo do poder. Nestes anos todos, os movimentos, apesar das gigantescas lutas, sempre acabaram se rendendo a institucionalidade capitaneada pelas forças oligárquicas. Agora, com Correa, o povo está de novo na batalha. Ainda não falam em derrubar o presidente. Ele tem bastante aceitação popular. As gentes têm consciência dos avanços e os movimentos estão mais maduros, mas isso não significa que não brigarão para garantir suas demandas. Por isso vão às ruas e protestam. Talvez, os acontecimentos deste 30 de setembro levem o presidente a rever sua postura diante das reivindicações. Mesmo entre os aliados de Correa é corrente a constatação da falta de tato do presidente ao lidar com os movimentos. Por vezes ele é arrogante, intransigente e explosivo. Isso pode ser visto na reação com os policiais quando arrancou a gravata e sugeriu que o matassem ali mesmo. Estas são coisas que os movimentos sociais não aprovam e provocam faíscas durante as negociações.

O fato é que a peleia com trabalhadores armados é muito mais delicada e isso pode ser visto durante o episódio deste 30 de setembro. Parece bastante claro que os trabalhadores iniciaram o movimento como uma legítima defesa dos seus direitos, mas no avançar dos acontecimentos a ocasião se apresentou propícia para aqueles que confabulam contra o governo. E daí para uma tentativa de golpe foi um pulo. Até porque não é de hoje que a inteligência equatoriana denuncia o pagamento de informantes dentro da polícia por diplomatas estadunidenses. Eva Golinder também já denunciou que a USAID derramou no Equador só em 2010 mais de 30 milhões de dólares. O que precisa ficar explícito ao se analisar os fatos no Equador é que o inimigo nunca dorme. Ele aí está, vivo, tramando, infiltrando, ganhando pessoas, e sempre pronto para o bote. Por isso é que esta caminhada de mudanças dentro da ordem sempre é uma grande incógnita. Há que vigiar e cuidar... Vale sempre lembrar o exemplo do golpe em Honduras, o crescimento da direita na Venezuela, o ataque a senadora Piedad Córdoba. O inimigo está desperto e é perigoso!