O trabalho, nos tempos antigos, sempre foi gerido pelo tempo da natureza. O sol era quem determinava a hora de fazer esta ou aquela tarefa. Todo mundo sabia de seus afazeres e não havia motivo algum para que alguém controlasse o tempo. De qualquer forma sabe-se que o relógio, como um mecanismo de marcação do tempo, existe desde há cinco mil anos, e naqueles tempos eram chamados relógio de sol. No ano de 250 depois de Cristo surgem as ampulhetas, um jeito de marcar o tempo que podia ficar sobre a mesa de trabalho dos grandes sábios, que se perdiam em divagações e já não acompanhavam o tempo da natureza. Desde então a engenharia do relógio só evoluiu, a ponto de em 1500 já existirem relógios portáteis. Já o relógio de pulso foi inventado por um velho conhecido nosso, Santos Dumont. Hoje, a indústria do relógio chega a produzir mais de 250 milhões de unidades.
Mas o famoso relógio-ponto, que controla a hora e a vida dos trabalhadores só surgiu na Inglaterra, no auge da revolução industrial, no início do sistema capitalista. Os patrões entendiam que o livro-ponto era passível de fraudes e a idéia de um equipamento que controlasse entrada e saída de forma mecânica se espalhou. Era a marca de uma racionalidade a serviço do capital e da exploração humana, uma vez que o relógio servia apenas para escravizar o trabalhador e não para garantir-lhe direitos.
O tempo passou e as relações de trabalho foram mudando. A luta dos trabalhadores conseguiu avançar muito na discussão dos processos de controle e, hoje, em pleno século XXI, apesar de o nível de exploração continuar tão alto como no século XIX, já se pode vislumbrar algumas mudanças significativas na relação trabalho x tempo. As negociações entre patrões e empregados conseguiram, em muitos casos, estabelecer acordos importantes nessa área. O tipo de trabalho específico de determinadas categorias também permitem que o tempo possa ser trabalhado com flexibilidade, sem prejuízo para a produção.
Agora, o governo decide lançar uma portaria que nada mais é do que uma grande “mão-na-roda” para os empresários que produzem equipamentos eletrônicos, particularmente relógios. Mais uma vez interferindo nas relações do capital x trabalho pró-capital, o governo torna obrigatório o uso do relógio-ponto eletrônico em todas as empresas do país. A alegação é até singela. Serviria para melhor controlar a exploração a que são submetidos os trabalhadores que cumprem jornadas de sobretrabalho. E, em tese, parece ser para proteger o trabalhador. Mas, com uma análise mais apurada, já se pode perceber que essa medida é um tremendo retrocesso nas relações de produção, um retorno ao início da revolução industrial.
Marx já mostrou desde há muito tempo que no sistema capitalista não há meio termo nas relações de trabalho. Elas sempre são de exploração do trabalhador. Não importa quão bonzinho possa ser o empresário, todo o seu objetivo é voltado para o lucro, e este lucro só pode ser garantido com a mais-valia do trabalhador, ou seja, com a sua exploração. Não há formas de mudar isso, a não ser mudando o sistema todo. O que os trabalhadores conseguem, no mais das vezes, dentro do capitalismo, é afrouxar um pouco a corda, e esse tem sido o papel dos sindicatos desde o início da sua existência. Lutar contra o capital para dar um pouco de conforto ao trabalhador, permitindo que ele não seja “tão” explorado. Mas a exploração segue, ora maior, ora menor, pois é da natureza do capital.
O processo de luta pela redução das horas trabalhadas faz parte deste contexto. Com os avanços tecnológicos, os trabalhadores conseguem produzir o mesmo, senão mais, em menos horas trabalhadas, daí a grande batalha que tem sido travada pelas 30 horas semanais. Seis horas de trabalho por dia garantem, com folga, uma boa produção e ainda o lucro do patrão. Ou seja, a exploração continua, mas o trabalhador poderia dispor de um tempo livre através do qual cuidaria da família, curtiria um lazer, estudaria etc...
Mas, apesar dessa luta ter se espalhado pelo planeta, ao que parece, governos e patrões sequer tomam conhecimento da mesma. Então, voltar a coisas tão antigas como o controle dos trabalhadores via relógio, agora eletrônico, só mostra que muito pouca coisa avançou no mundo do trabalho.
O relógio-ponto no serviço público
As idéias “bem-intencionadas” do governo para proteger os trabalhadores, não bastassem estar gerando crise no mundo do trabalho privado, também já aparecem na esfera pública. A Universidade Federal de Santa Catarina, querendo ser mais real que o rei, decidiu “sair na frente” e impor o relógio-ponto eletrônico aos seus trabalhadores. Tal e qual o governo, os dirigentes universitários dizem que é para o bem dos trabalhadores, para trazer isonomia num ambiente onde muitos trabalhadores não cumprem a jornadas de trabalho. Os argumentos, pífios, só conseguem mostra uma profunda incompetência administrativa.
Na verdade, ao se aprofundar nas diretivas da medida da UFSC, percebe-se que a proposta de controle eletrônico muda tudo, para que tudo continue como está. Diz o reitor Álvaro Prata que os trabalhadores com cargo de chefia não estarão submetidos ao ponto. E não é de estranhar, já que nesta gestão foram criados dezenas de cargos, todos estratégicos, para consolidar o velho esquema de poder que vige na UFSC desde há 50 anos. A lógica é sempre a mesma. Coloca-se um pouco de poder na mão de um pequeno exército e estes “empoderados” garantem a continuidade das políticas conservadoras da universidade. Para se ter uma idéia, nestes 50 anos de existência, a UFSC teve um único sopro de democracia, no curto período do mandato de Diomário Queiróz, e ainda assim, o conservadorismo não permitiu grandes arroubos.
Agora, na gestão de Álvaro Prata, chega-se a essa situação: implantação de relógio-ponto, retrocesso medieval, para que o grupo político que se perpetua no poder siga dominando através do segundo escalão que ficará livre do elemento escravizante. Aos demais trabalhadores, sobrará a lógica privada de produção, talvez um ensaio para a privatização que segue vindo a galope nas universidades brasileiras. O reitor (que vem da área da produção), quem sabe, esteja querendo entrar para a história como aquele que abriu caminho para o processo de produção privada dentro da UFSC.
Os trabalhadores da universidade tem um fazer muito específico, completamente diferente de uma fábrica. Eles não estão submetidos a processos de produção que exijam contagem de tempo limitante. Estes trabalhadores mexem com o trabalho imaterial. Fazem pesquisa, atuam na extensão, auxiliam nas atividades do ensino. É toda uma dinâmica bastante diferente de uma produção mecânica e, mesmo essa, como já vimos, com as novas tecnologias, tampouco precisariam deste controle proposto pelo estado.
Ninguém nega que é preciso controlar a assiduidade dos trabalhadores, afinal, o serviço público é de fundamental importância para a comunidade e nada pode justificar que alguma atividade não seja oferecida à população. Mas os trabalhadores tem propostas para isso e não é de hoje. Estas propostas estão continuamente na mesa dos dirigentes, e são eficazes e exeqüíveis. No caso da UFSC, desde 2003 que os trabalhadores apresentam a proposta de seis horas de jornada, com garantia de atendimento de 12 horas ininterruptas. Chegando a alguns casos ao total de 18h, considerando os cursos que funcionam também à noite. Eles propõem que os nomes dos trabalhadores de turno sejam afixados nos locais de trabalho para que o público possa cobrar em caso de ausência. Além disso, existem os trabalhadores que exercem atividades de campo, cujas horas também devem ser de conhecimento público, portanto, tudo muito definido, sem possibilidades de falha, salvos as eventuais, humanas.
Assim, segue a velha luta dos trabalhadores contra aqueles que insistem na exploração. No setor privado é a mesma luta capital x trabalho, mas, no serviço público, o que seria o motor de administradores de plantão? Essa é uma pergunta que exige resposta! No caso da UFSC não é difícil de chegar a uma conclusão. A medida do relógio-ponto é excludente, discriminatória e reforça os mecanismos de controle dos trabalhadores, e não é do horário, é do controle mesmo, político. É só uma forma “mais moderna” de manter sob o cabresto os técnico-adminsitrativos, já que os professores estão fora deste mecanismo do relógio-ponto. Ou seja, na UFSC, é o mais do mesmo. As mesmas velhas práticas truculentas e predatórias, só que revestidas de um caráter de “modernidade”.
Outra pergunta que fica no ar é sobre a reação dos trabalhadores? O que farão? Como está se posicionando a CUT, as demais centrais, os sindicatos? Na UFSC os trabalhadores estão se mobilizando por conta própria, em ações nos centros. Começou agora e pode se transformar numa onda gigante. Há que esperar. A apatia ainda é um grande entrave, mas, quem sabe, quando setembro chegar...