Alzheimer/Velhice

sexta-feira, 21 de maio de 2010

O Jornalista Multifuncional


Lages, interior de Santa Catarina, dia de chuva torrencial. Meia dúzia de sindicalistas se coloca em frente ao portão do jornal Correio Lageano. Está um frio de rachar, mas os jornalistas insistem no ato público. Vieram de várias cidades do Estado para exigir da dona do jornal, Isabel Baggio, atual presidente do Sindicato das Empresas de Jornais e Revistas, que apareça para negociar, uma vez que estão em campanha salarial e os patrões se negam a ir para a mesa. O jornal fica próximo ao terminal de ônibus e as pessoas passam às dezenas. Observam os manifestantes com olhar curioso, ao que parece aquilo nunca aconteceu em Lages, médio município da serra catarinense. Com um megafone, Rubens Lunge, presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, conta para os moradores da cidade a vida dura de um jornalista. O povo olha desconfiado, afinal, é sempre comum no interior as pessoas ricas e influentes serem as depositárias da verdade. Isso incomoda demais a empresária que decide chamar todo mundo para uma conversa.

Dentro do jornal ela aparece, um pouco tensa, e insiste que não havia a necessidade de ninguém se “abalar” desde a capital para um ato como aquele. Mas os jornalistas que ali estão sabem que sim, era preciso. O Correio Lageano é um jornal do interior em nada diferente dos demais jornais do Estado, boa parte deles de um dono só, os Sirotski, que já formam um oligopólio em Santa Catarina. Ainda fora das presas da família gaúcha, o jornal de Isabel, tal como os outros, segue os maus exemplos da mega empresa. Do grupo de jornalistas que atua no jornal, poucos deles recebem o piso da categoria, mesmo os que estão registrados como repórter. Outros estão expostos a subterfúgios como o de serem registrados em outras funções. Muitos não tem registro. Agora, em pleno mês da data-base, os jornalistas dos médios e pequenos jornais, como este da presidente do sindicato patronal, também devem entrar na ciranda pós-moderna, que faz a cabeça de 10 entre 10 empresários da comunicação, muito bem amparados no insensamento histérico de boa parte do professorado nacional da área do jornalismo: a idéia do jornalista multifuncional. Palavra bonita e “moderna” que nada mais é do que a velha idéia da superexploração do trabalhador. Não contentes em sugar a mais-valia dos seus jornalistas com salários de fome, os empresários agora demandam que eles sigam as exigências de seu tempo: a flexibilidade, a rapidez e a portabilidade (arg!).

E o que é esta coisa de multifuncionalidade?

Qualquer pessoa mais ou menos ligada nas coisas do seu tempo sabe que estas palavras são fluentes na forma societal conhecida como neoliberalismo e que muito estrago provocou no mundo, na década de 90 do século passado. Mas, como cabe a um país colonizado, ainda estamos vivenciando isso aqui no Brasil.

A história da rapidez está associada ao tempo presente, cujo advento das novas tecnologias exige um profissional capaz de informar com mais agilidade sobre o que acontece. A histeria sobre o jornalista é a de concorrer com os blogueiros. Dizem os “especialistas” em comunicação que a internet e os blogs são espaços de informação muito rápida. Um blogueiro pode postar centenas de informações sobre um determinado fato tendo apenas um celular. E isso leva à exigência de que o jornalista também tenha de ter um celular conectado à internet para postar tantas informações quanto um blogueiro qualquer, mesmo que esse blogueiro apenas coloque a informação crua, sem qualquer interpretação ou análise, coisa típica do jornalismo. Assim, as empresas entregam um celular ao funcionário e querem que ele fique colocando informações em vez de centrar-se no fato que está presenciando para, depois, com calma, fazer uma boa análise. Ou seja, acreditar que o jornalista deve concorrer com o blogueiro nada mais é do que diminuir o jornalismo.

Já a flexibilidade é uma linda palavra para coisas tão antigas e feias quanto o sistema capitalista: perda de direitos e superexploração. Em nome da “modernidade” dos tempos de novas tecnologias as empresas querem que os trabalhadores aceitem serem levados para lá e para cá, sem quebrar. Então, exigem que o jornalista contratado como repórter passe a fotografar, faça filminho para colocar na internet, dirija o carro da empresa, poste no twitter, alimente o blog do jornal ou da TV e, se bobear, varra o chão. Ah, e é bom que se diga, tudo isso tem de ser feito dentro do horário de sete horas, que é o tempo praticado por quase todos os meios de comunicação, apesar da carga horária legal ser de cinco horas. A flexibilidade se configura no fato de que ele exerce todas essas funções, mas ganha por uma só. “É a modernidade”. Além de tudo isso, como no geral as empresas estão entrando na onda de ter também blogs, twitteres e portais, o profissional é “convidado” a contribuir nos demais veículos. Ou seja, cumpre várias funções e ainda trabalha para vários veículos, sem qualquer mudança no salário. Não tem choro, ou o jornalista aceita, ou a porta da rua é serventia da casa. Tem milhões lá fora esperando para entrar, dizem os patrões. E, assim, a servidão voluntária, tão bem descrita por Etienne de La Boétie , em 1552, nunca foi tão popular.

Por isso, causa profundo pesar observar a alegria com que muitos jovens jornalistas se submetem a esta quase escravidão, acreditando que com isso estão aprendendo e tornando-se mais “modernos”. Como sindicalista tenho ouvido relatos de deixar qualquer um de cabelo em pé, como a “acusação” de que o sindicato não deveria se meter em questões “tão pequenas” como, por exemplo, denunciar o fato de um profissional, contratado como fotógrafo, escrever matérias de vez em quando, sempre que o veículo precisar. No mais das vezes, os jovens jornalistas se colocam na pele do dono ou dona do jornal e acreditam que eles tem mesmo muita dificuldade de manter o negócio e que por isso, “não custa nada” ajudar. Mesmo que esse “coitado” seja o dono de um oligopólio, como é o caso da RBS no sul do Brasil.

A terceira palavra que define a multifuncionalidade é a tal da portabilidade. Assim, o jornalista começa a ser comparado com um aparelho de celular. Nestes, a portabilidade significa que a pessoa que tem um celular pode usar o chip de qualquer operadora, não ficando “prisioneira” de nenhuma empresa. Percebem a violenta crueldade do conceito? Se ele se fixa na nova exigência colocada ao jornalista, fica parecendo que o jornalista, tal e qual o aparelho de celular, também é livre (o celular igualmente não é!). Ele pode transitar de uma função para outra sem qualquer amarra legal, assim como transita entre as variadas empresas do mesmo dono. Tão absolutamente libertador quanto fumar Malboro ou andar de Honda. E os profissionais se encantam com esta possibilidade, sem perceber que a única liberdade de que são portadores, é a de ser explorado com alegria.

A tecnologia existe para o homem e não o homem para a tecnologia

Sempre me encantou uma frase de Jesus ao povo, quando questionado pelo fato de que fazia curas aos sábados, descumprindo, assim, a lei judaica. O galileu, com a tranqüilidade dos sábios, sentenciou: a lei existe para o homem e não o homem para lei, deixando claro que um homem verdadeiramente livre subverte aquilo que o oprime. Assim, penso, deve ser a tecnologia. Como qualquer jornalista moderno gosto demais destas novidades tecnológicas que permitem a rápida circulação das informações. Fotos postadas no twitter, pequenos textos circulando nos blogs, celulares ultra mega powers, etc... Mas há uma coisa básica nisso tudo que precisa ser problematizada. Informação não quer dizer jornalismo, necessariamente. Posso postar no twitter que a cidade de Florianópolis está alagada neste momento. E mostrar fotos dos alagamentos, etc...

Mas, estes pequenos textos informativos não dão conta da atmosfera totalizante do fato. E o jornalismo é isso. Na singularidade de um fato dado, aquele que narra precisa transitar pelo particular e atingir o universal, tal qual ensinava o mestre Adelmo Genro Filho. Por que a cidade alagou? Quais os motivos que levaram este bairro alagar e não o outro? Como agiu a defesa civil? Por que estes fatos se repetem, sempre nos mesmos lugares? Quais as conseqüências para os atingidos? Enfim, toda a sorte de interpretações da realidade que precisa ser feita por alguém com olhar aguçado, capaz de perguntar e observar, sem se desviar por ter de carregar a bateria da câmera, ou filmar, ou fotografar e postar em tempo real, e twitar e coisa e tal. Um jornalista é uma pessoa que apreende a totalidade do fato, não é um doidivanas carregado de toda a sorte de “portabilidades” que afugentam a atenção para o que é verdadeiramente profundo. Isso me faz lembrar o exemplo de um repórter fotográfico de conhecido jornal local que, obrigado a cumprir a função de motorista, ao se deparar com um fato em movimento, desceu do carro correndo e esqueceu-se de puxar o freio de mão. Lá se foi o carro ladeira abaixo. Nesse caso, venceu o jornalista e sua visão de agente público de informação. Mas, quantos se lixariam para o carro correndo rua afora? Quantos não voltariam, salvariam o carro da empresa e perderiam a foto? Por isso, repórter-fotográfico precisa estar livre para olhar e capturar o instante. Não pode ficar prisioneiro de múltiplas funções.

Obviamente que reputo uma importância abissal aos blogueiros de plantão e a toda a sorte de gente que usa as novas tecnologias para repassar informação. Gosto de saber que tem milhares de seres por aí postando coisas, cenas, fotos, informações que, depois, reunidas por um bom jornalista que também viu os fatos, possam ser analisadas em profundidade, dando-se o devido destaque às causas e conseqüências, formando a grande e quente colcha da totalidade que cobrirá o leitor na sua inteireza.

Pesquisas do IBGE dão conta de que o Brasil está vivendo um drástico problema. Os estudantes, e as pessoas em geral, estão perdendo a capacidade de interpretar um texto. Ou seja, as pessoas lêem a informação, mas não conseguem desdobrá-la, compreendê-la na totalidade. Isso não é conversinha de “esquerdista” ou de jornalistas “dinossauro”. São os fatos. Pesquisas sérias de institutos sérios. Por conta disso, insistir em centrar foco na mera reprodução desenfreada de informação é desserviço.

É certo que não se pode pedir ao empresariado da comunicação brasileira - que vê o leitor/espectador como cidadão-cliente, como mero consumidor de um produto - que se preocupe com o nível de compreensão da realidade do povo. Eles estão se lixando para isso. Querem vender jornal, querem vender anúncio e fortalecer a mais-valia ideológica que mantém as gentes vinculadas ao sistema produtivo mesmo quando estão em casa, supostamente descansando, vendo TV. Nosso alvo tem de ser então os jornalistas.

São eles os que precisam compreender o que é, efetivamente, o jornalismo. Serviço público, espaço de compreensão totalizante do real. Não é papel do jornalismo concorrer com a rapidez internética. Basta a gente se lembrar do tempo dos infográficos, recordam? Os jornais queriam concorrer com a velocidade da televisão e enchiam suas páginas com infográficos descontextualizados. Mostravam muito bem como tinha sido a coisa, mas não explicavam os porquês. Era a superficialidade da TV transformada em papel. Virou febre, mas não durou muito. Assim, penso deverá acontecer com a tal da multifuncionalidade. Será uma febre, e vai passar. Jornalistas que faz cinco coisas ao mesmo tempo às fará todas muito mal feitas.

Leitor não é Homer Simpson

É certo que para o dono do jornal, amparado na razão capitalista, será uma dádiva ter um profissional que ganha por um e trabalha por cinco, nos seus diversos veículos. Mas, mesmo eles, ao compreenderem os mais rudimentares preceitos do capitalismo, verão que o tal do leitor, que eles consideram cliente, vai acabar percebendo a má-qualidade. Porque leitor não é “Homer Simpson” como já alegou William Bonner. E, igualmente, os trabalhadores, que hoje se submetem à servidão voluntária, acreditando que com isso estão garantindo emprego ou coisa assim, também terminarão percebendo que a flexibilidade, a rapidez e a portabilidade da multifuncionalidade só os deixam doentes, e não lhes garantem o emprego. Porque, no mais das vezes, quando uma “peça” do sistema falha , ela é substituída por outra, mais novinha e ávida por ser a “mais veloz”.

A nós, que atuamos na luta sindical, cabe desvelar as mentiras escondidas sob o manto da nova onda e organizar as batalhas coletivas dos trabalhadores escravizados pela reestruturação produtiva do capital. A tecnologia, os novos e modernos instrumentos de trabalho devem sim ser conhecidos e dominados por todos os jornalistas, mas, trabalhando numa empresa, não temos de ser obrigados a fazer tudo o que a tecnologia permite. Lembrem do nazareno e sua verdade incontestável: as novas tecnologias, que são conquistas de toda a gente, porque se derivam do trabalho socialmente produzido, são muito boas e muito legais. Mas elas foram feitas para nos libertar e não para nos escravizar. Ser multifuncional não é coisa de hoje. Somos profissionais, pais, irmãos, amigos, filhos, colecionamos coisas, praticamos esportes, fazemos artesanato, enfim, atuamos em várias frentes.

O perigo da tal multifucionalidade só aparece quando ela se transforma numa bola de ferro no nosso pé, a serviço do lucro de alguém. Como dizem os povos de fala hispânica: Ojo! O que na nossa língua mãe significa nada mais do que “olho vivo, meu irmão!” Não caia no conto do patrão. Ele toma champanhe em Paris enquanto tu esperas no posto de saúde, acometido de LER, estresse crônico ou depressão. E, mais tarde, vem a demissão!”...

segunda-feira, 17 de maio de 2010

domingo, 16 de maio de 2010

Eu vi o final da novela


A novela Viver a Vida terminou neste sábado e, como sempre, uma novela da Globo, por ser uma usina reprodutora de mais-valia ideológica, repercute em vários outros momentos da telinha. Este folhetim em especial suscitou muito debate sobre o que ficou configurado como “a possibilidade de superação”, uma vez que a personagem principal, Luciana, era uma garota linda, de profissão modelo, que sofre um acidente e fica paraplégica. A novela então se move neste universo de superação da personagem que, ao longo da trama, em meio à dor, vai encontrando caminhos e formas de viver que transcendem a sua condição de prisioneira de uma cadeira de rodas.

Assim, por meses, enquanto durou a novela, esse tema da superação foi assunto dos programas de entrevista, dos programas de entretenimento, dos noticiários, enfim, permaneceu como pauta, sempre reforçando que as pessoas podem superar suas desgraças físicas e pessoais. E é assim que se expressa a mais-valia ideológica como bem já demonstrou o venezuelano Ludovico Silva. A pessoa que assiste à televisão, na verdade, não está “descansando” ou “fruindo”, mas segue absolutamente conectada aos ideais e às idéias da classe dominante, que ali reforça suas verdades. E foi por assim entender que se me ficou, neste sábado de último capítulo, a seguinte questão: afinal, que pessoas, neste país, tem verdadeiramente a condição de “superar”, de transcender?

Pois vamos ver o destino dos personagens do enredo da novela das oito global.

A menina Luciana, que era uma chatinha mimada, amadurece, enfrenta com galhardia seu destino de paraplégica, encontra um amor (que também é médico), casa, passa a lua de mel em Paris e termina dando a luz a gêmeos. Ora, isso é mesmo de chorar. Luciana é rica, tem um motorista que a leva a todos lugares, vai aos melhores fisioterapeutas, não tem que ficar nas filas do SUS, teve uma enfermeira particular ao longo da recuperação e seguirá tendo. Seus filhos correrão pela casa enquanto duas ou três babás estarão a postos aos menores desejos. Que vida sem névoas! Luciana superou tudo apoiada na família, sempre presente. O pai chegou a reformar a mansão para atender a todas as novas necessidades. Tudo correu bem. Ela foi mesmo um exemplo de superação, chegando a manter um blog para contar isso a toda gente. Certo, mas na verdade, a única coisa que a personagem de fato superou foi aceitar a condição de prisioneira da cadeira de rodas, porque o demais sempre lhe garantido.

A mãe da Luciana foi a sofredora da trama. Enfrentou a separação de um marido canalha, e teve de passar por toda uma via-crúcis com a filha acidentada, ainda atendendo as demandas de uma outra filha mau caráter, que acaba com um texano rico (presente ou castigo?). Nesse processo foi muito apoiada pela terceira filha, boazinha e virgem. Ela conseguiu passar por todos os tropeços com muita valentia. Cuidou da filha, dedicando-se integralmente. O que foi possível porque a linda mulher não trabalhava, era fartamente sustentada por uma pensão do rico marido calhorda. Então, ali também não havia névoas. Era só superação emocional. No final da trama, depois de ver a filha feliz, ela finalmente encontra um novo amor, com quem vai passar a lua de mel em Paris. Incrível como Paris parece estar sempre na rota dos sofredores endinheirados.

Há ainda outra personagem que é um lindo exemplo de superação. Não lembro seu nome, mas é a garota alcoólatra. Durante toda a novela o público vibrou com as desventuras da mocinha, que desprezada pelo namorado, não conseguia superar o vício que já tinha. Então, ela encontra um novo amor, recebe o apoio dos amigos, encontra um emprego incrível, de modelo fotográfico, e vai superando, entre uma recaída e outra, o seu problema. Nos últimos capítulos ela ainda recai mais uma vez, mas tudo lhe é perdoado. Ela é linda, o namorado é uma ameba compreensiva e vai terminar morando com ela, com o projeto de andarem perambulando pela Europa. Bonito demais.

A personagem Dora, que durante toda a trama foi uma desonesta, ladra de marido e tudo mais, também encontra redenção. Ela deixa de ser uma chinelona que vive de favor na casa dos outros e encontra um homem mais velho, de classe média alta, dono de restaurante, que lhe acolhe, reconhece a filha mais velha e, de quebra, descobre que o garotinho que poderia ser filho de outro, é mesmo seu filho. A família termina feliz, entre tangos e festa. Toda a tentativa de se dar bem na vida, buscada de maneira torta pela personagem, acaba dando certo e tudo lhe é perdoado.

A linda Helena, moça negra, mas não pobre, que enfrenta a traição de um marido vagabundo, perde um filho e sofre por sentir-se responsável pela desgraça da amiga Luciana, termina a novela com um fotógrafo de moda, lindo, embora meio burrinho, que lhe dá um filho. Ela também acaba vivendo sua possibilidade de redenção, superando as culpas. No final do capítulo, Helena e Luciana terminam na passarela, em um desfile de alta moda, no qual a paraplégica aparece maravilhosa, mostrando que chegou a cume da superação. Nem mesmo o trabalho de modelo ela perdeu.

A Sandrinha, irmã mais moça de Helena, que ao longo da novela comete o pecado de se apaixonar por um favelado e ter um filho dele, igualmente vive seu momento de redenção. Depois da morte do marido, que era um bandidinho rampeiro, ela volta para a linda pousada da mãe e encontra o “perdão” para sua falta de filha rebelde, indo trabalhar em instituições de caridade. Ela não encontrará entraves porque a rica mãe lhe ajudará a criar o filho do bandido morto.

E assim seguem os finais dos personagens, todos da parte rica da novela. Gente bonita, lindos casamentos, superações, viagens a Paris. E até na parte pobre também há alguns bons exemplos de “ir adiante”, que parece ter sido o mote da trama. O garoto bonzinho, primo da Dora, termina a novela cantando no bar do argentino, tendo sua chance de iniciar a vida de artista. É o prêmio que lhe é dado por ser sempre um garoto amável, cumpridor das tarefas, que nunca reclamou do patrão, que sempre foi submisso. Ele sabia que ter aquele trabalho de garçom no bar do argentino era uma bênção e que não poderia abrir mão disso nunca. Sua irmã, ambiciosa, mas não tanto a ponto de ser má, também consegue que o dono do novo bar olhe para ela como se ela fosse um objeto sexual e lhe ofereça emprego. Sim, emprego, porque não lhe ocorre um casamento. Mulher pobre e bonita é pra curtir. Ela aceita maravilhada.

Já o garoto bandido, Benê, esse não tem chance de superação. A ele não lhe é permitida a redenção, embora ele sempre tenha se mostrado um bom garoto, premido pela vida cruel da favela, enrolado com o tráfico e o crime apenas porque não tinha muita saída. Mas, não, esse não teve chance de “superar”. Alguém na novela tinha de pagar por seus crimes ou quedas morais. Alguém tinha de ser punido, não dava para acabar tudo bem. Então, a escolha lógica era Benê. Ele era negro, pobre, favelado, bandido. A ele não podia ser dada qualquer oportunidade. Foi-se, morreu! É que o menino Benê não queria ser garçom na pousada da sogra, não queria ser caixa de supermercado, ele sonhava mais. Ele era rebelde, inconformado, e na sua revolta singular deixava antever um desejo coletivo de vida boa para todos os seus companheiros da favela. Ele queria dar ao filho as belezas anunciadas pelo sistema, antevistas nas casas ricas dos amigos da mulher. Ele queria viagens a Paris, talvez... Ele queria tudo que aos outros era dado. Mas não teve chance. Alguém na novela tinha de morrer. Não podia ser o Marco, empresário mau caráter, mulherengo, corrupto. Não podia ser a alcoólatra linda e aventureira, que só queria perambular pela Europa, não podia ser a Dora, traíra e ambiciosa, não podia ser a Helena, nem mais ninguém do mundo certinho e viável do núcleo dos ricos. Não, haveria de ser o guri rebelde, o insurgente. Estes não podem chegar à redenção. Estes não superam. Eles sucumbem e ponto. É assim.

O fato é que não se poderia esperar outra coisa de um folhetim do Manoel Carlos na Globo. É a visão de uma classe. E na classe dominante as coisas são assim mesmo. Tudo pode ser superado, porque não há julgamentos morais. Tampouco há empecilhos materiais. Agora, imagine a vida de uma mãe, sem marido, com a filha paraplégica, lá no Morro do Céu? Imagine uma trabalhadora qualquer, do comércio, por exemplo, que sofra um acidente e não possa mais trabalhar? Bom, mas isso não daria novela. Seria muito baixo astral. O bom mesmo é mostrar a realidade assim, na perspectiva de uma classe que pode, sim, tudo superar e transcender. Uma gente que pode ter fisioterapeutas particulares e ir para Paris quando está muito triste.

O bom das novelas é que elas nos permitem esse olhar, o nosso, desde a outra classe. E nos possibilitam ver que para os lindos, ricos e bem nascidos, o destino dos pobres é absolutamente claro. Os que não se queixam, os que não se rebelam, terminam nos empreguinhos mais ou menos, explorados e bem felizes. Já os que se insurgem, os que enxergam o mundo para além do conforto permitido pelos ricos, estes tem de morrer, sumir, escafeder-se.

Bueno, e ao final do folhetim cabe a nós dizer onde estão os nossos espaços reais de “redenção”. Na nossa “novela” de vida real, há um elemento que pode alavancar nossa verdadeira superação. A solidariedade concreta, a cooperação comunitária e compreensão de que o nosso mundo pode ser bonito, pleno e rico. Não por conta da exploração de uns pelos outros, mas porque saberemos distribuir a riqueza e construir o mundo novo. Neste nosso mundo, que construiremos, o Benê teria chance. Coletivamente, com a comunidade em luta, ele teria superado. E, no fundo, em muitos lugares deste brazilzão, é assim que já é. Só que a rede Globo jamais mostraria. Cabe a nós fazê-lo! É o que buscamos fazer na Pobres e Nojentas, revista de reportagem que conta a vida real. E assim, avançamos, para além da telinha aliciadora e alienante.