domingo, 3 de maio de 2020

Outono roubado



Não gosto muito do verão. O calor é excessivo, a gente fica melequenta, a cidade assume outra cara por conta dos milhares de turistas, e a praia fica cheia demais. Por isso, quando o ano acaba eu fico esperando março. Não que eu não goste dos turistas e de toda a movimentação que eles trazem. Acho bom e bonito, mas me perco naquela multidão de desconhecidos. E gosto de andar pelo Campeche cumprimentando os amigos. No verão, amigos não há. Só estranhos. Assim que os meses de calor passo mais no Bar do Zeca do que na praia. Só olhando e enfrentando uma geladinha.

Mas quando chega março, aí tudo muda. O céu fica de um azul intenso. Ainda é calor, mas não tanto. O mar fica clarinho, a areia vazia. E, de novo, as carinhas conhecidas aparecem. E a gente anda pela orla encontrando todo mundo. A cada dez passos uma paradinha para um abraço, um beijo, uma conversa. É outono, a estação do ano mais linda que há. E assim passam março e abril, numa beleza sem par. Quando chega maio é o tempo da missa do trabalhador, da pesca da tainha, e a praia fica pipocada de pescadores, olheiros e curiosos esperando os lanços.

Esse ano não teve março nem abril, o outono nos foi roubado. Veio o vírus, o isolamento, e ainda que lá fora os dias fossem de uma belezura infinita, tivemos de ver passar sem as caminhadas na praia. Agora chega maio, com toda sua lindeza, eivado de dias cheios de vento suli. E, nesse dia primeiro, não teve a missa de abertura da pesca, criada pelo seu Getúlio. E a gente não se encontrou na beira do mar para rezar, fofocar e falar mal do prefeito. Lá nos ranchos de pesca os pescadores seguem consertando as redes, ajeitando as canoas, esperando que a tainha venha, mesmo que sem a bênção. Mas ainda assim, o maio passará sem que se possa vivê-lo em plenitude. Os dias passam em meio ao estupor de ver milhares e milhares de brasileiros morrendo por conta da omissão governamental diante de uma tragédia sanitária. E quando pá, o outono de 2020 terá ido embora, deixando o rastro de uma boniteza que não foi vivida.

Hoje, o dia está emburrado, não há sol, corre um friozinho gostoso. É maio, enfim. Lá fora, voejam os passarinhos e correm os cachorros de rua. Tomam a direção do mar. O mar que eu não verei, de um outono que não desfrutaremos. A vida escorre, perdida. E eu sinto as lágrimas quentes correndo pela cara. Nesse mundão de deus, milhares de almas jamais verão outro outono, alcançadas que foram pelo vírus maldito. Talvez eu sobreviva, não sei. O que sei é que por agora, mesmo diante da plenitude dessa estupenda estação, não há motivos para qualquer alegria.


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